terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Neon


Eu estava vagando sozinho pela noite na cidade e sem perspectiva de me divertir. Um boteco sujo, uma garrafa de gim vagabundo e um blues qualquer na vitrola. Era minha esmola de felicidade naquela noite.

Quando a lua nasce todas as dores se jogam distorcidas nas nossas caras como num teatro de sombras e suas pernas já estão bambas o bastante para que você suporte tudo sem um trago. Um gole que desce quente garganta abaixo, a fumaça do cigarro saindo pelas narinas e você já não está ali por um centésimo de segundo. Quero multiplicar essa sensação até o infinito. Amanhã será só mais um dia de ressaca e o sol estará brilhando e rindo de mim e dos erros que cometi ainda antes dele nascer. Mas ainda consigo trabalhar como se nada tivesse acontecido, distribuindo sorrisos de cera para os colegas que nem desconfiam que tudo o que eu mais queria era chorar no fundo de uma piscina de azulejos brancos com água bastante clorada.

A madrugada vai chegar e eu estarei aqui sentado ouvindo B.B King solando Lucille com firmeza e afeto, como um dia meus dedos percorreram o corpo dela.

You know I tried to be
The man you wanted me to be
But whatever I do, baby
It seems to add to your misery
Oh you can do
What you want to, baby
But you are still my woman

Queria calar a boca e ir dormir mas a minha visão começa a ficar turva e estou inebriado pela bebida. As luzes de neon que piscam lá no final da avenida são um deleite em forma de caleidoscópio. Uma explosão nuclear que banha meu rosto em tons de laranja, cinza e púrpura. Perscrutando por um campo de batalha onde não sairá um vencedor e onde não há glória. No começo dela não há uma doce amante acenando com um lenço branco e em seu extremo oposto há apenas um abismo e nenhum abraço de boas-vindas. A garçonete me serve outra garrafa e percebo que ela está com muito sono. São duas da madrugada. Ela tem cabelos negros e cortados na altura do pescoço alvo e longo. Bêbado demais para soltar um gracejo qualquer. Não há nada mais sincero do que homem embriagado metido a galanteador pois elas sabem que não podem esperar muito mas desta vez eu deixei passar.

O álcool fala alto quando tudo o que você tem é uma vida e nada para preenchê-la. O que havia de real se esvai de suas mãos rapidamente e se incinera como uma estrela cadente bem em frente dos seus olhos. Uma simples queda para perder todo o seu sangue e você é só uma casca oca que o vento pode esmigalhar em poucos segundos. Um espaço escavado em seu peito e vazio te faz tão mal que chega a ser menos horrível a ideia de injetar dor nele. Pelo menos você está vivo. A dor é a nascente do sangue em suas veias e de manhã pode-se pensar em encontrar uma maneira de fazê-lo correr entre elas como outrora.  Às vezes tudo o que precisamos é de algo frívolo como o nascer do sol.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013




O CALAFRIO por Filipe Teixeira


Ela deitou-se no sofazinho do quarto aconchegando a cabeça em duas almofadas. Apoiou os pés no outro braço do móvel e apoiou o livro nas pernas, cuja morenice estava escondida pela calça de moleton cinza. Fazia frio, mas a calefação deixava o ambiente agradável. Antes de começar a ler o livro, olhou pela janela. Ainda era dia, embora os próximos minutos fossem os últimos. Os galhos secos de uma árvore em frente ao prédio gotejavam ainda os resquícios da chuva que passeara intermitente por aquela tarde. Ao lado do sofá, uma cadeira com um copo de vinho barato, de que ela tomava goles esporádicos. Ela sentava-se, pegava o copo com a mão esquerda e fechava o livro, marcando com o indicador da mão direita a página onde havia parado. A história que lia não era lá empolgante, mas era o que ela precisava naquele fim de tarde. Por vezes, ouvia uma sirene ao longe, ou um pneu cantando, ou um barulho de motor que ia veloz e imaginava o que estaria acontecendo. Transportava-se para a ambulância e segurava a mão do doente que era levado para o hospital; imaginava-se o pedestre que forçara aquela freada brusca; era a amada ansiosa que esperava por aquele amante apressado… e voltava para a leitura. Anoitecera. A luz natural já não era suficiente. Levantou-se e caminhou até o interruptor. Aproveitou e foi à cozinha para encher o copo de vinho que estava quase vazio. O álcool lhe esquentara o sangue. Diminuiu a temperatura da calefação e voltou ao sofá. A história que lia a surpreendera em certo ponto e já parecia mais interessante. Uma gota d’água prestes a cair do galho lá fora refletia a luz do poste e ela perdeu-se naquela imagem. Eram quase seis.

Ele saiu do prédio onde trabalhava e o vento frio o obrigou a calçar as luvas, embora não gostasse daqueles acessórios. O tato dos dedos ficava comprometido; por isso, quando chegou ao metrô, precisou tirar uma delas para pegar o cartão com mais agilidade. Hora do rush, os outros passageiros estavam impacientes atrás dele, não podia perder tempo. O letreiro luminoso avisava que havia perturbações na linha e que o próximo trem demoraria mais do que o previsto. Pedimos desculpas pelo transtorno. Sentou-se em um banco, tirou as luvas e pôs-se a ler o guia cultural da cidade. Marcou com uma caneta as peças de teatro, as exposições, uma mostra de cinema, um curso aos sábados e prometera a si mesmo participar de tudo, assim como fizera nos meses anteriores, mas sabia que, como nos meses anteriores, não cumpriria. Perdeu a concentração na leitura porque uma criança brincava, solta, muito perto do vão entre as plataformas. Os pais conversavam calmamente e olhavam para a criança. Ficou mais apreensivo quando ouviu o sinal de que o trem estava chegando. A luz do vagão frontal apontou. Seriam três estações, depois mudaria de linha e então mais quatro. Conseguiu um lugar sentado e retomou a leitura. Foi interrompido por um cego que pedia esmolas, depois pelo aviso da próxima estação, depois pelo casal que conversava nos assentos em frente ao seu. Desistiu. Guardou o guia na mochila, encostou a cabeça na parede do vagão e convergiu seu pensamento para a espera.

Ele desceu do metrô e caminhou os três quarteirões até o apartamento. Fazia muito frio, mas não quis pôr as luvas, afinal chegaria logo. Ela teve uma sensação atípica, o resultado da mistura entre a empolgação do livro, que definitivamente tornara-se interessante, e a quentura que o vinho espalhara por seu corpo. Aumentou a potência da calefação, tirou a calça do moleton, vestia agora só a camiseta larga e a calcinha. Tomou outro gole de vinho e abriu o livro no momento em que ouviu o som da chave girando na fechadura. Fez o movimento contrário, fechando a obra lentamente, marcando com a orelha do livro a página onde tinha parado. Ao escutar os passos, lentos, pelo corredor, pôs o livro na cadeira, ao lado do vinho. Em seguida, deitou-se mais à vontade no sofá, virando o rosto para o encosto e pousando a mão com unhas vermelhas na coxa nua. Ele parou na porta do quarto e contemplou aquela imagem. Um copo de vinho pela metade, um livro e sua morena seminua, todos no mesmo ângulo. Depôs a mochila e aproximou-se da mulher. Fez um movimento para livrar o pescoço dos cabelos e encostou levemente o dedo frio na pele dela. Ela então mordeu o lábio inferior. E tremeu.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Combustão


"Você simplesmente mente com medo de omitir e isso me diverte".

Com estas palavras, Bianca colocou a garrafa de vodka sobre a mesinha ao lado do sofá e monto em meu colo. Afaguei-lhe os cabelos e inclinei a cabeça para beijá-la. Meti uma mão em sua coxa esquerda e a outra por dentro de sua camiseta vermelha do Dead Boys. Empurramos nossos corpos à caminho de uma colisão. Logo peças de roupa foram jogadas ao chão, cintos se encontraram devidamente desabotoados, hálitos rescenderam a álcool e tabaco e nos engolimos como se quisessemos entrar em combustão. As unhas dela percorreram minhas costas e meus braços enquanto eu lhe tocava entre as pernas. Ela me fitou com seus pequenos olhos carregados de rímel e disse: "Me fode até me dividir em duas".

Eu havia conhecido Bianca num boteco imundo que funcionava no quarteirão ao lado há dois meses atrás enquanto o DJ rolava It All Dies Anyway do The Gits. Ela usava um short jeans desbotado e uma blusa preta. Tinha o cabelo picotado e pintado de vermelho nas pontas e suas coxas grossas, brancas e rijas resplandeciam na escuridão do ambiente como duas pedras do Stonehenge. Ela era o tipo de mulher que ficava muito mais bonita triste. Possuía uma melancolia nada disfarçada debaixo daquela maquiagem carregada e isso era uma das poucas coisas que me interessava naquela época: pessoas tristes. Eu precisava ver que mais gente além de mim sofria, isso me deixava mais calmo.

- Acho que te vejo por aqui todas as vezes em que apareço. Você é viado ou só gosta de cerveja barata? - ela perguntou.
- Adoro cerveja. Barata ou não.
- Mas não gosta de viados?
- Nada contra. E você, por quê sempre vem aqui?
- Moro por perto. Naquele prédio ali. Sozinha.

Não vou contar sobre o resto da noite em que a conheci. É exatamente previsível como parece. Na semana seguinte nos reencontramos e eu a levei para minha casa. Assim que ela chegou reparou num convite de casamento ainda lacrado.

- Você não vai abrir, Gustavo?
- Não. Você tem isqueiro?
- Claro.
- Queima essa porra pra mim.

Ela abriu e leu em voz alta:  - Carolina Bastos e Guilherme Santiago. Espera, ele é parente seu?

- Sim, meu irmão.
- Ah, então tá - falou enquanto incinerava o papel-cartão.

O fato de Bianca fazer poucas perguntas e deduzir demais me deixava confortável. Outra teria perguntado o motivo de não querer saber do casamento de meu próprio irmão. Guilherme e eu éramos completamente diferentes mas pouca coisa justificaria tamanho rancor. Naquele momento lembrei de quando estudávamos no Colégio Militar e eu batia em todos os moleques que resolviam mexer com ele. Eu fui criado especialmente pelo meu pai para aguentar porrada e revidar, Guilherme foi criado por mamãe como um bibeló por causa da saúde frágil, mas ele só tinha asma. Crescemos e virei advogado meio que sem querer e ele seguiu carreira militar. O inverso seria mais condizente com nossas maneiras de levar a vida caso eu não tivesse um ódio profundo pela vida na caserna.

Bianca morava naquele apartamento há apenas três meses, no mesmo andar onde minha agora cunhada morava. Imaginar que me relacionei com as duas é bem divertido. Carolina era a típica moça de família que não teria uma bela foto nas páginas sociais se casasse com um vira-lata como eu. Que tal um oficial fardado? Oh, com certeza seria algo mais próximo do que todos esperavam. Já Bianca não lia jornais, achava todos um desperdício de papel. Ela era uma garota com juízo. Depos dos advogados, os jornalistas são os piores seres humanos a pisar na terra. Claro, militares como meu irmão estão muito acima de qualquer comparação.

Quando Carolina terminou o namoro comigo porque "havia conhecido outra pessoa", que vejam só, era o meu próprio irmão, eu tinha certeza que não estava sendo o que ela esperava que eu fosse. Pelo menos eu nunca desci a porrada nela como o Guilherme faz, aquele tremendo covarde. Mas isso faz muito sentido: Carolina era o tipo de mulher que apanhava na cozinha, Bianca era aquela que apanhava na cama. Aos poucos a segunda foi tomando seu lugar na minha casa e eu não fiz qualquer resistência. Eu não tinha mais nenhum irmão para roubá-la de mim. O que mais me magoa é que a única vez em que dei um soco no meu irmão foi quando eu tinha uns doze anos de idade e ele nove. Tudo porque ele não revidou quando um garoto mais velho o humilhou na frente da menininha que ele gostava. Queria ter adiado este soco por uns vinte anos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Faquir


Era umas oito da noite de um dia de semana quando eu pensei se iria beber ou não. Estava de férias mas ainda de ressaca da noite anterior. A garrafa de whiskey parecia me chamar repousada sobre a estante. Eu me sentia tonto, como uma árvore que estivesse sendo devorada por bestas desdes as raízes. Por quê não algumas doses? Antes de me servir da primeira delas eu me peguei pensando em você, Izabel. Bem, nos últimos dois anos eu me permiti cair num ciclo de relações fugazes e que pouco me exigiam, logo, seria divertido imaginar que ainda sofria por você. Às vezes me pergunto se me dei tempo suficiente para que isto acontecesse... Enfim, parecia uma ideia divertida, você não acha?


Eu tenho uma carta que está totalmente escrita na minha mente. Nunca a passarei para o papel. É que isto é completamente desnecessário agora. Mesmo que você sentasse aqui na poltrona me encarando eu nada diria. Eu também nada disse quando você se foi e não recebi agradecimento algum por isso. Comecei lembrando do quão fraca você era para a bebida e da maneira que seu corpo já se encontrava tépido quando eu te jogava com força na cama e fazia meus dedos perambularem por cada costura do seu vestido. Você me deixava completamente louco quando usava aquela meia-calça preta que eu te dei. Era uma sensação maravilhosa colocar a boca no espaço entre as suas coxas e tirá-la com os lábios. Em questão de tempo eu escalava seu corpo inteiro até chegar à boca, ao pescoço e ao colo. Enquanto te beijava com meu hálito rescendendo a gim, colocava minhas mãos em seus seios ainda por cima das suas roupas. Esses peitos pontudos que parecem ter sido esculpidos para caber exatamente nas palmas das minhas mãos como se a América do Sul e a África estivessem juntas em um só continente mais uma vez. O teu francesinho de merda faz isso também? Eu só o vi umas duas vezes na vida e os dedos dele em teus peitos agudos, firmes e sadios devem parecer tão pequenos quanto uma balsinha ancorada no porto de Xangai. Se ele faz isto, deve pedir com licença todas as vezes: "Excusez-moi, Izabel, je peux revenir sur ses mamelons?". Desculpe se estou parecendo rancoroso, mas por mais incrível que possa parecer, eu não o odeio. Apenas o queria morto. Pra ontem.

Dois dias depois de você ter partido eu olhei pro trabuco que guardo pendurado na parede aqui de casa e que pertencia ao meu tio Alfredo. Eu nunca atirei nem em lata de tinta a vida toda mas estava tão bêbado nesta noite que imaginei usá-lo pra estourar os miolos do Gustave. Em menos de um minuto desisti. Sua amiga Ana estava deitada aqui no sofá com um seio pra fora da blusa e aquela visão me fez esquecer um pouco essa estória. Até um homem como ele merecia uma morte mais digna. Agora você deve estar me achando um tremendo canalha por ter dormido com sua melhor amiga. Isso é algo bem típico de mulheres como você  e nem me incomoda tanto. Ter me trocado por um cara do outro lado do mundo que usa gola rolê e óculos de armação grossa é se aventurar. Por outro lado, eu dar uns belos amassos na sua amiga depois de você ter me descartado é algo sujo, grotesco, quase hediondo. Se a senhorita tivesse me trocado pelo Artur, que conheço desde o colegial, eu juro que não teria ficado tão puto. Porra, o Artur é do meu tamanho, um homem grande e com certeza a mão dele cobriria um peito seu. Aliás, você bem sabe que sempre fui vidrado em umas tetas e se você, Izabel, um dia souber que eu fodi a Ana, saiba que foi com ela não com o objetivo de te atingir mas única e exclusivamente por causa daqueles peitos formidáveis que ela tem. Vocês são mulheres, já devem ter trocado de roupa num mesmo cômodo e sei que já viu aquele par de vulcões estourando um sutiã. Tão grandes, bicudos e potentes que meus lábios e língua tiveram que fazer várias viagens de reconhecimento naquele imenso terreno.

Ah, esqueci de falar que ela é uma grande putinha safada. Eu queria muito dizer que após tudo isso acabei me apaixonando por ela e aí sim, diria tal coisa só pra te atingir, mas sei que ela não é pra mim. Eu ficaria obcecado e talvez eu a perdesse como te perdi. Coloquei mais um trago pra mim e acendi um cigarro. Sabe a Patrícia, aquela estagiária do jornal de quem você tinha ciúmes? Ela casou com o Artur há dois meses. Você sempre foi tão ingênua que colocou na cabeça que eu a desejava. Aquilo foi sério, Izabel? Patrícia era uma garota por quem eu jamais gastaria tempo. Não que ela não fosse atraente, mas eu tinha você quase morando aqui. E nesta época você sequer percebia como eu olhava para a minha vizinha estendendo roupa em seu quintal enquanto eu fingia cochilar na varanda... Não, nunca aconteceu nada demais, era apenas um vago exercício de imaginação que só virou uma hipótese real quando pensei em ir até sua casa chamá-la para uma ou duas bebidas e para ouvir meus discos pois eu sabia que ela também gostava de música. Isso foi quando você viajou pela primeira vez para a porra da França. Disse-me que a viagem duraria só duas semanas e acabou ficando lá por quanto tempo mesmo? Ah, uns seis meses. Pena que quando você voltou pra vender suas tralhas e me deixar ela já havia se mudado.

Eu tenho meia garrafa de uísque para lembrar de você, Izabel e amanhã tudo voltará ao normal pra mim. Eu queria te odiar porque assim me sentiria um pouco mais vivo do que agora quando estou sentindo absolutamente nada. Se um dia você resolver ligar pra mim, me mandar uma carta ou coisa parecida, promete que vai me falar que seus peitos ainda são os mesmos ainda que você tenha uns três filhos e um marido de boca mole? Eu acho que no fundo, foi a única lembrança que me sobrou. Eu gostei muito deles durante uma parte da minha vida mas hoje eu preferiria deitar minha cabeça sobre uma cama de faquir. Vou lembrar disso tudo só por hoje. Mil perdões se fui um pouco indelicado.

Seria melhor ter saído e comprado uma garrafa de gim. Estava com dinheiro mas teria escolhido o mais vagabundo.

P.S: A casa ao lado da minha ainda está sem morador.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Calibre

                                                               Um
Era uma noite quente de sexta-feira quando pisei no Lupanar e Suzana não estava me esperando com uma caneca de cerveja. Dantas, a proprietária do local, me disse que a branquela não havia voltado das compras que fora fazer no final da tarde. Pedi uma dose dupla de uísque e resolvi esperar. As placas de neon piscavam nas ruas do velho Centro da cidade e logo iriam parecer cada vez mais turvas para os olhos boêmios dos frequentadores dos bares, prostíbulos e casas de jogos ilegais.

Acendi um Camel com o Zippo que Ted Boy havia esquecido no meu carro. Àquela altura ele devia estar interrogando o traficantezinho de quinta categoria que havíamos prendido pela manhã. Ted Boy era o tipo de sujeito que teria um grande futuro na polícia, pelo que todos diziam. Filho de inspetor, formado em Direito, família de classe média, disciplinado e um par de óculos que junto de seus ternos bem cortados lhe conferiam um aspecto intelectualizado demais para ser um cana. Era o exato oposto de mim: um bisneto de imigrantes pobres, natural do Boto Preto, uma vizinhança imunda que ficava lá pras bandas do porto, usuário de jaquetas de couro surradas e que aprendeu a brigar com um marinheiro que foi uma espécie de padrasto torto.

Coloquei meus olhos sobre o jornal que estava sobre o balcão e em uma grande foto na primeira página o filho do prefeito apareceu sorridente em sua campanha para deputado federal. Apostar na sua eleição era uma poule de cem. Com aquele cabelo ensebado de gel e sorriso largo sobre um queixo anguloso logo teríamos o mais novo puro-sangue liderando o páreo. A eterna escolha entre os escolhidos.

- Vai votar nele? - Matias, o barman, me perguntou.
- Não, só estava lendo. Sabe por quê a Suzana não veio trabalhar hoje?
- Não sei, ela nunca falta. Eu mesmo liguei para o apartamento dela mas ninguém atendeu.

Agradeci ao Matias, terminei o drink e saí do bar. Um maldito de um panfleto do primeiro-filho da cidade flanava pelos ares. Dei um soquinho no papel que logo foi ao chão. Com um prazer infantil mostrei o dedo do meio pra foto daquela cara que parecia feita de cera. Entrei no meu carro, liguei o veículo e toquei para o apartamento de Suzana. Quando atravessei uma larga ponte meu celular tocou. Deixei o aparelho no viva-voz e atendi a ligação: "Enseada. Briga. Dois baleados e um morto". Esse era eu recebendo as robóticas instruções de Ted Boy.

Cheguei ao local, um bar fedido nas cercanias da minha antiga vizinhança, Ted Boy já havia isolado a área e conversava com Bastos, nosso colega, e com o Palhares, o médico-legista. Bastos era o mais antigo membro do distrito apesar de ser mais novo que a maioria dos policiais e possuía uma ilibada reputação. Palhares tinha mais ou menos uns cinquenta anos e seu semblante tinha aquela morbidez típica dos que trabalham examinando e cortando defuntos. Seu nome verdadeiro era Carlos Marinho, mas todos o chamavam de Palhares porque julgavámos que este era um bom nome para um legista. Em todo filme policial brasileiro tem um legista chamado Palhares.

Uma ambulância já havia recolhido os dois homens que foram baleados, um garçom e um traficante conhecido como Bolinha. A gente tinha um Ted Boy e um Palhares, logo merecíamos meliantes com nomes melhores. Lembro da vez que prendi um sujeito chamado Ananias Incendiário e me senti dentro de um filme de baixo orçamento. Ananias era piromaníaco e tornou-se reconhecido por queimar seus inimigos vivos. Ironicamente tinha morrido um ano antes do episódio no Enseada durante um incêndio causado por um curto-circuito no presídio em que cumpria pena. Quando soubemos da notícia tratamos de contar logo ao Palhares que mandou uma de suas clássicas analogias: "é como ser ninfomaníaco e morrer numa suruba que você não organizou".

Palhares olhava taciturnamente para o corpo e Ted Boy falou sem fazer rodeios: - Esse cara é amigo Dinho Sassuolo. O nome dele é... era Jair Albuquerque. Estudou com a gente no Santa Fé há mais ou menos, deixa eu ver, uns dez anos.

- No que ele tava metido? - indaguei.
- Você devia me perguntar com quem ele estava metido.
- Tem uma marca de mordida perto da jugular esquerda do Jair.

Abaixei-me para conhecer de perto nosso mais novo amigo e pude ver um grande pôster estampado com a foto do herdeiro dos Sassuolos onde se podia ler o slogan "A tradição da juventude".

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O Jantar

O jantar estava marcado para as oito e meia, o que faria Marisa chegar lá pelas nove e quinze. Estava confiando nisso, pois não havia dado tempo de fazer os preparativos adequadamente. A mesa estava posta na varanda, a massa saindo do forno e o vinho no balde de gelo. Eu olhei para o relógio de pulso: oito e quinze. Tempo para um cigarro. Escorei-me no parapeito e olhei para o céu sem nuvens e a lua estava mais cheia do que nunca vira antes. Olhei para baixo e podia avistar casais saindo da confeitaria do outro lado da rua. O bairro parecia todo parado no tempo, um souvenir de uma civilização antiga encravado na carne urbana pretensamente moderna que era a grande cidade ao seu redor. Tudo era nostálgico por aqui, andar por essas ruas era como um vórtice temporal, um rasgo de navalha nas veias do tempo. Herdei a casa de meu avô após sua morte, há quase uma década, quando eu ainda estava na faculdade de Letras, onde conheci Marisa, que cursava História no mesmo campi. No meio de tanto bicho-grilo, encontrei a única garota que dividia os mesmos gostos pelos livros que ninguém pegava na Biblioteca e pelo rock setentista e jazz. Logo começamos a namorar. Na primeira vez que ela veio aqui, lembro de sua surpresa ao ver a coleção de vinis do meu avô, que até hoje se mantém do mesmo jeito que ele deixou. A única diferença é que transformei seu quarto em um escritório domiciliar.
Enquanto eu jogava a fumaça para o ar em forma de anéis, a vitrola tocava Our Day Will Come. Poderia haver algo mais apropriado naquele momento?
Our day will come
And we’ll have everything
We’ll share the joy
Falling in love can bring
No one can tell me
That I’m too young to know
Cause I love you so
And you love me, love me
Enquanto os acordes ecoavam pela casa, o casal octogenário que mora ao meu lado, na única casa pintada com uma cor quente naquela vila, saiu junto da confeitaria e acenou para mim. Com um movimento rápido na mão que segurava o resto do cigarro, retribui o cumprimento e voltei a cabeça para o lado observando Seu Paulo ajudar sua mulher a subir os três degraus até a porta. Ver os dois sempre me deixava otimista, mas no fundo eu sabia que aquele amor só condizia com o tipo de vida que se levava por aqui, com poucas expectativas, e por isso mesmo, livre de quaisquer cobranças maiores. Agora um jovem casal passava pela minha calçada. O rapaz olhava para a garota com um olhar que mesclava admiração e um tanto de medo. Disse qualquer bobagem que a fez rir e ensaiaram uma dança com a música que saía alta das caixas de som da vitrola de meu avô. Riram mais um pouco e seguiram seu caminho abraçados. Por muitas vezes ensaiei com Marisa alguns passos desajeitados em frente aquela porta como se a rua fosse um salão de dança a céu aberto, enquanto meu avô ouvia seus discos. Minha intenção era mais bancar o bobo para fazê-la sorrir do que demonstrar qualquer habilidade, como aquele rapaz tinha feito com sua garota. Aquelas ruas sempre foram um espelho do passado.
Quando olho para o relógio na parada da sala de jantar vejo que são oito e quarenta e cinco. A campainha toca duas vezes. Antes de descer para o andar de baixo, ajusto meu blazer e no caminho até a porta, escondo alguns croquis que estavam jogados pela casa. Desço as escadas com todo aquele material de trabalho nas mãos e o jogo no quarto que serve como local de trabalho, apesar de eu ter um escritório no bairro vizinho. Ouço mais um toque na campainha e finalmente abro a porta. Marisa entra e o perfume de jasmim invade a sala. Usava um vestido azul-marinho que lhe caía muito bem parando logo abaixo dos joelhos e seus cabelos pretos como piche estavam amarrados num rabo-de-cavalo. Ela olha ao redor e depois pousa os olhos verdes sobre mim.
- Você não mudou nada por aqui. Geralmente a primeira coisa que um arquiteto projeta é a sua própria casa - falou com uma voz bem mais grave do que eu lembrava. “Deve ser por causa do cigarro”, pensei.

- É que o projeto original era muito bom pra ser modificado e o arquiteto que o projetou merece essa consideração com sua obra.

- Lembro de como você ficou triste quando ele morreu.

- Mas do que você ta falando? Eu namorava a Carolina na época. Nós dois mal mantínhamos contato.

- Era? – perguntou como se fingisse surpresa.

- Era. Você já tinha me trocado pelo cabeludo lá...

- Quem? O Bruno?

- Bem, não sei mais quantos cabeludos você namorou depois.

- Alguns, talvez. – falou enquanto nós subíamos as escadas.
Aquele cinismo não era propriedade dela. Quando a conheci, era uma garota com mais vitalidade do que qualquer uma que eu já tivesse visto. Seus olhos resplandeciam como fogos de artifício explodindo numa noite litorânea e aquele ar blasé de agora me enojava profundamente. Sequer era sexy. Era apenas uma irritante defesa, e se ela tinha ido ali imbuída deste espírito, o jantar seria uma tragédia. Nunca foi a minha intenção ajustar as contas ou algo do tipo. Só sentia que deveria vê-la após aquele breve encontro de dois anos atrás.
Ao chegar à varanda, preparo dois mojitos e nos sirvo. Ficamos em pé, apoiados no parapeito de mármore.
- Quer dizer que você ainda é sócio do Pedro? – pergunta ela ainda mantendo o tom displicente, mas eu sabia que ao falar de Pedro, ela queria chegar ao assunto Carolina, já que os dois eram irmãos.
- Bem, somos sócios pra vida, eu diria. E ele quase foi meu cunhado também – mordi a isca de propósito.
- Por quê não se casaram?
- A Carolina nunca seria feliz se casando comigo. Enquanto namorávamos, tudo estava bem, mas ela podia lidar com um namorado relapso, nunca com um marido assim.
- Você nunca foi relapso comigo. Às vezes até me aborrecia com esse seu jeito de amar demais.
- Sim, por isso você me trocou por um poetinha sensível de centro de humanidades.
- Como você é rancoroso, Ernesto. Eu te falei quando terminamos que ele me deixava mais livre, estava mais próxima do que eu queria naquele momento.
- Amor nunca é liberdade. Talvez você apenas nunca tenha me amado.
Nesse momento uma fagulha se acendeu em cada um dos olhos dela. Parecia querer dizer o contrário, mas não era mais a mesma que conheci, ou pelo menos fingia não ser. Limitou-se a permanecer calada.
- Marisa, não tenho nenhum pudor de dizer que te amei.
- A gente era tão jovem... Eu tinha dezenove anos! Você sempre foi instável pra cacete e vê tudo somente pelo seu ponto de vista. Isso foi me afastando de ti, me dava vontade de sentir alguma outra coisa. Posso ter sido infantil, mas você tem que admitir que foi também.
- Claro, meu bem. A juventude é a eterna advogada de defesa dos incautos. Me mostre um homem idiota aos vinte anos, que eu te mostro um adulto cheio de desculpas e lamentações daqui a duas décadas.
- Como se você não tivesse nenhuma, não é?
- Talvez só ter te amado tanto – chegava a hora de ser mais cínico que ela.
Preparei mais dois copos para nós e sentei no sofá. Peguei o cinzeiro e acendi mais um Lucky Strike. A vitrola tocava Chet Baker. Isn’t It Romantic? era a música mais irônica do mundo naquele instante.
- Estou com fome. Tomara que você ainda cozinhe bem.
- Depois dessa bebida, comemos. Olha, é uma bela noite de sexta-feira. Lembra que foi ali que te beijei pela primeira vez? – apontei para a entrada do cinema desativado no fim da rua.
- Lembro. Não sabia que tinham fechado o cinema. Que filme fomos ver mesmo?
- Eu sei lá. Sempre odiei cinema e só fui porque você deu a idéia. Mas naquele dia nem sequer chegamos a comprar o ingresso... – disse enquanto olhava para o relógio de parede com uma foto de Veneza ao fundo - Bem, são nove e meia e é melhor jantarmos logo.
Fui até a cozinha pegar o espaguete a parmeggiana e quando me agacho para abrir o forno, vejo que Marisa estava em pé ao meu lado com uma taça do chardonnay que eu havia deixado no balde de gelo.
- Ernesto, tomei a liberdade. Espero que você não se importe, mas esta noite pede um bom vinho.
- Não, sem problema. Eu nem gosto muito de vinho mesmo. Lembra meu padrasto – disse enquanto colocava a travessa sobre a mesa.
- Você sempre escolheu as pessoas pra odiar gratuitamente?
- Não, assim não seria gratuito.
- Você ainda tem o mesmo sorriso. O mesmo de quando te conheci – disse isso também sorrindo e colocando a taça de vinho na frente do rosto como se quisesse brindar comigo.
Fomos até a varanda e começamos a comer. Resolvi experimentar aquele vinho que havia ganhado de um cliente. Não era tão ruim e eu não me apressava em beber o mesmo número de taças que Marisa bebia.
- É, cozinha bem ainda – ela coloca as mãos cruzadas sobre o rosto e continua – Poderia até ser um chief se não fosse arquiteto. Poderia até ser um bom marido.
- Mas com você, serei sempre o ex-namorado que cozinha bem. Deve ter sentido falta disso quando o vegetariano te preparava comida macrobiótica.
- Sempre quis as coisas do meu jeito, mas ele me fazia experimentar. – disse olhando com desdém para o lado.
A mesa era um tabuleiro de xadrez e ela adorava bancar a rainha. Estávamos ali nos estudando como dois rivais e o xeque-mate podia ser adiado só pelo simples prazer de ver o adversário ainda nutrir esperanças de vitória. Sinto o pé dela roçar minha perna e aquilo me pareceu uma jogada desleal. Seu olhar estava diferente, ainda altivo, mas com aquele brilho que ela parecia ligar e desligar quando queria.
- Lembro de quando a gente dançava escutando os discos do Seu Ernesto.
- Uma dança não te daria indigestão agora? E nunca fui o melhor dos dançarinos – falei rindo com o canto esquerdo dos lábios.
- Isso é o que menos me preocupa agora – disse levantando-se e estendendo a mão em minha direção.
Peguei um compacto de Dean Martin e pus na vitrola.
Like a lazy ocean hugs the shore
Hold me close, sway me more
E ali, naquela cidade sem litoral, ela sempre fora meu oceano. Desprendi seu cabelo, segurei sua firme cintura e puxei-a contra meu corpo. Olhei para seu rosto que agora não tinha algum resquício da Marisa que tocou a campainha há uma hora e meia.
- Já nos conhecemos há tanto tempo, Ernesto. Somos jovens ainda e já é tanto tempo.
- Pelo menos você não pode dizer que estou apressando as coisas.
O beijo mais previsível de todos. Meus lábios queriam marcar todo o corpo de Marisa. Encostei-a no parapeito e subi minhas mãos até tocar seus seios pontudos. Mordo seus lábios e sinto o perfume em seu pescoço e nuca. Desfaço-me do blazer e logo nós dois estávamos nos despindo ali mesmo na varanda. E a vitrola continuava a repetir a única música que o lado daquele compacto tinha
Make me thrill as only you know how
Sway me smooth, sway me now…

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Edição Extra


Meia-noite e quinze no relógio de pulso e meia-noite e dez no relógio da catedral. Esse era eu tentando correr mais rápido do que o tempo. A quinta-feira havia acabado de entrar e eu sequer saíra da quarta. Enquanto eu via os últimos insones desligarem as luzes de suas casas e preparando-se para o sono, eu ainda estava caminhando pela rua. "Tenho de trabalhar menos, quem sabe umas férias na praia", conclui. Naquele ano aconteceriam eleições para prefeito e os editores do jornal caíam em cima de nossas carcaças como urubus. Eu estava esgotado e precisava de um trago. Era o dia 7 de Junho de 1951 e, bem, nessa época não era incomum nem tão mal-visto quanto hoje o fato de um homem beber após o expediente.

Dirigia-me ao bar do Amaral quando uma chuva forte me pegou de surpresa. Como estava perto do local, resolvi correr por debaixo de uma marquise, o que não me impediu de chegar com o sobretudo molhado ao meu destino. Um dos garçons o recolheu e o pendurou em um cabide perto da jukebox desligada. A banda da casa tocava seu repertório repleto de standards de jazz, salsa e polca. Antes que eu pudesse fazer meu pedido inicial, sempre uma grande caneca de cerveja, uma mão acena para mim de uma mesa lá do fundo. Pela gola do terno já levantada, a gravata torta e as mangas da camisa branca dobradas me dou conta que se trata de Heleno, colega do Edição Extra.

- Vem sentar com a gente, seu sacana! - gritou com seu jeito expansivo.

Peguei minha cerveja e fui até a mesa. Uma moça loira e vestida elegantemente fazia-lhe companhia. Heleno logo nos apresentou. Seu nome era Leila e fumava uma cigarrilha.

-  Alguém ficou na redação? - perguntou-me Heleno.
- Só o Matias.
- Um grande lambe-botas. Só ele mesmo para levar o Heitor a sério.
- Estive pensando em voltar a fazer cobertura esportiva, falando nisso.
- Esportes? Nesta cidade? Sequer um time de futebol decente nós temos!
- Heleno, o quê eu estou cobrindo atualmente?
- Política. Você é o melhor da cidade, aliás.
- E, por algum acaso, temos políticos decentes? Não, mas ainda assim cubro.
- É, acho que você me colocou em maus lençóis na frente dela - respondeu rindo e colocando o braço direito ao redor de Leila - Escuta, você reconhece as duas moças na mesa em frente?

Antes mesmo de olhar para trás, escuto vozes familiares comprando cigarros.

- Não são as garotas da Rádio Capital? As cantoras? - perguntei o mais baixo que podia.
- São elas mesmas, Dolores Ribeiro e Marta Miranda. Hoje mesmo fizeram um número no programa do Antenor Castro. Ouvi enquanto escrevia sobre a campanha do filhinho do ex-prefeito.

- O Heitor me disse que queria falar contigo amanhã. Acho que é por causa desse seu artigo.
- Que se dane aquele gordo impotente! - e Heleno levantou seu copo propondo um brinde, o qual acompanhei com prazer.

Após virarmos o resto de nossas canecas de uma só vez, Leila aponta para a mesa em que as divas do rádio se encontravam. Dois marmanjos trajando ternos bem cortados sentaram cada um ao lado de uma das garotas. Um deles era Marcelo Castro, herdeiro da Rádio Capital, bem como de algumas outras empresas, e o outro seu primo Jair, filho mais novo do atual prefeito. Todos conversavam animadamente e faziam bastante barulho. Bem, aquilo era um bar, então não me importei.

- Elas parecem dois rouxinóis engaiolados - enfim Leila dizia algo.
- Ouvi dizer que os artistas da Capital sofrem nas mãos do Castro - completou Heleno.
- Ah, essas fofocas do Frank Rockfeller...
- Não, não foi o Frank que me falou e sim a nobre loira sentada ao meu lado - falou enquanto apertava Leila.

Marcelo e Jair bebiam whiskey como se quisessem matar a sede após uma maratona e logo começaram a trocar passos quando iam ao banheiro. Continuavámos a tomar cerveja e Leila permanecia sem beber. Quando perguntei-lhe o motivo ela falou que o álcool prejudicava suas cordas vocais e ela tinha um teste, indicado por Frank Rockfeller, na Rádio Campos na manhã seguinte. Sabendo que Frank era um tremendo vigarista, avisei-lhe para tomar cuidado. Qualquer sujeito que se chamava José de Arimatéia e utilizasse um pseudônimo ridículo como este merecia toda a desconfiança do mundo. Não que eu fosse contra o uso de pseudônimos, mas não custava ter bom senso.

- Você leva o Frank a sério demais, Artur. O que um afeminado como ele poderia fazer de mal para ela? - e pôs-se a rir com o canto da boca.
- Tenho lá minhas dúvidas a respeito das preferências dele.
- Eis um desconfiado convicto - disse ele balançando a cabeça.

Como estavámos sem cerveja e os três garçons não conseguiam dar conta de todos os pedidos, fui buscar mais dois chopes no balcão. Um sujeito com barba por fazer me pediu um cigarro. Tirei o maço do bolso de dentro do terno e dou-lhe um. Ele acendeu e me agradeceu com um "Obrigado" que saiu entre dentes rangendo. Andei de volta para a mesa com as duas canecas e um homem alto, começando a ficar calvo e cheio de rugas no rosto parou na minha frente. Pedi com licença. Ele permaneceu fincado no chão.

- O senhor é jornalista, não é? Acho que precisamos conversar.

Aquilo estava parecendo cena de um dos filmes noir que eu gostava de assistir com Luiza nas matinês de domingo.

-  Olha, eu não estou comprando nada no momento, mas se o senhor quiser se juntar ali com meus amigos, será bem-vindo - menti quando disse que ele seria bem-vindo e fiz um gesto com a cabeça em direção a minha mesa.
- Sinto muito, mas o senhor vai ter de me acompanhar - ele disse tentando se impôr, como se sua altura avantajada já não fosse o suficiente.
- Olha, acho melhor outra hora - acendi um cigarro - não estou com intenção de discutir qualquer coisa séria. Isso deve ser sério, não?

Vi Heleno se aproximar por trás do cara alto. Dei a ele uma das canecas.

- O que está havendo aqui? - disse ele, parecendo um anão com quase metade do tamanho do nosso novo companheiro.
- Bem, seu colega aqui não tem muitos modos - retorquiu o grandão apontando o polegar em direção de Heleno.

Enquanto isso Marcelo e Jair levantaram-se com as cantoras fazendo clara menção de sair dali. Então o homem de barba chegou perto de nós, todos espremidos entre o balcão e as mesas.


- Epa, pra onde os senhores estão indo? Acho que podem ficar mais um pouco. O que temos pra dizer pode ser um recado muito proveitoso para todos aqui presentes.

Ele ainda falou mais algo que não entendi. Um filete grosso de sangue escorreu do meu supercílio direito quando o grandalhão me acertou com um soco inglês. Caí no chão como um pano sujo, colocando a mão direita por sobre o olho machucado. Ainda tonto vejo Heleno pegar a garrafa de uísque dos Castros e quebrá-la contra o tampo da mesa. Os dois almofadinhas se apavoram e saem correndo sem rumo, em direção a big band que continuava a tocar um clássico de Charlie Parker como se nada estivesse acontecendo. Levanto-me e agarro o barbudo, aplicando-lhe uma gravata. Nesta hora o truculento amigo do meu adversário já se engalfinhava no chão com Heleno.

De repente a energia elétrica do lugar cai e tudo ficou completamente às escuras. Ouço copos e garrafas se quebrando contra o assoalho, paredes e cabeças. O anúncio de que a confusão se generalizara. A banda já não tocava. Os únicos sons além dos socos, pontapés e vidro se quebrando eram os gritos histéricos das garotas que estavam no bar. Eu recebia socos na barriga à esmo, quando vou ao chão mais uma vez e sinto o gosto de cerveja derramada misturada com o meu próprio sangue. Dei um murro cego no ar e um pontapé surdo nas costelas de alguém. Apoiei-me sobre um das cadeiras mas não consegui ficar de pé. Ouvi o som da voz de Heleno chamando meu nome. "Estou aqui", respondo, e depois comecei a rir  por saber que naquela escuridão isso não adiantaria absolutamente nada.

Um tiro cortou o ar e o cheiro de pólvora tomou conta do ambiente.

Dois segundos depois a luz elétrica é restabelecida e percebo que estava tentando me levantar na mesa em que as cantoras estavam. Quando olhei para o lado, vi Amaral com um rifle apontado para cima mas o que lhe dava um aspecto ainda mais ameaçador era o olhar apontado para quem quisesse enfrentá-lo. Essa é a arma mais amedrontadora de um homem, no final das contas. Um covarde com uma arma só é algo perigoso pela imprevisibilidade. Um homem que sabe o que está fazendo com um rifle é ameaçador por si só.

- Quero os dois valentões trancados no banheiro. Joel, liga para a polícia - disse Almir para um de seus garçons. - Quanto ao resto de vocês, podem ir para casa depois de pagar a conta. A festa já acabou por hoje.

Os garçons prenderam os dois comparsas e depois saíram recolhendo o dinheiro de quem ainda devia algo. Heleno vem até mim com a mão no ventre, um riacho de sangue em seu lábio inferior e segurando um dente.

- Acho que é do nosso amigo gigante. Olha só o tamanho disso aqui! - falou arfando.
- Heleno, que diabos houve aqui? - perguntei ainda vendo as coisas girarem.
- Não faço idéia. Vencemos a briga? - e começou a rir como um demente.
- Acho que sim. Cadê sua garota?

Leila se levantou por detrás do balcão. Parecia a mais calma das mulheres que estavam no boteco.

- Quer que eu chame um táxi? - Joel me perguntou.
- Sim. Se não for pedir muito, pode ligar para este número também? - pego um bloco de papel do bolso, uma caneta e anoto o telefone de Luiza - Obrigado.
- Claro, Seu Artur. - e pôs-se a discar no grande telefone preto e após alguns segundo ele me me passa o aparelho.

- Alô, Luiza?
- Artur? Aconteceu alguma coisa?
- Mais ou menos. Uma briga de bar.
- Uma briga? Você está vivo pois acho que não há linhas de telefone no inferno não é mesmo? Não precisava ter me acordado por conta isso.
- Meu bem, quero saber se posso ir dormir aí hoje.
- Sim, pode. - e desligou abruptamente.

Essa era a minha Luiza. Alguém que fosse homem suficiente para tê-la como sua garota dificilmente temeria brigões de bar. Direta como um gancho. Um jab no meu queixo a cada beijo com sabor de marguerita. E eu a amava violentamente.

Leila amparava Heleno que enfim sentiu o baque. Sua maneira única e debochada de encarar as coisas conferia a ele uma resistência ímpar. Peguei o meu sobretudo e então nós três fomos para fora para pegar o táxi. Os dois companheiros de combate desceram alguns quarteirões depois, onde eu supunha ser o prédio dela. Depois de uns dez minutos eu estava em frente a casa de Luiza que me esperava na varanda com Núbia. Quando elas me viram parecia que estavam diante de um boxeador derrotado no qual apostaram todas as suas economias. Um misto de pena e raiva. Luiza entrou logo e Núbia me acompanhou até a sala. Ela me fez sentar no sofá-cama e me ajudou a tirar o terno. Pela janela, ainda podia-se ver o relógio da Catedral que marcava duas e meia da manhã.

- Não sabia que você havia trocado o jornalismo pelo boxe. Você está um nojo, aliás.
- Eu acho que escolhi a irmã errada, Núbia.
- Você só pode estar delirando. Luiza, anda logo e traz essa compressa de gelo!

Luiza veio da cozinha com seus passos miúdos e colocou a compressa em cima do meu olho roxo. Ela parecia brava. Acho que qualquer um no bar teria medo daquela expressão em seu rosto, até mesmo o Amaral.

- Vem cá, Luiza - agarrei-a pela cintura e a fiz sentar no meu colo. Dei-lhe um beijo e agora ela parecia apenas uma criança mal-criada.
- Quando o senhor vai parar de me dar preocupação? Podia ter me deixado ao menos dormir e vir com esse aborrecimento somente pela manhã.
- Eu preciso de cuidados. Querida, você não está vendo meu estado?

Ela passou a mão pelos meus cabelos e sentiu-os molhados de sangue. Colocou meu rosto contra a luz do abajur e ao se dar conta do estrago, ela pareceu finalmente arrefecer.

- Oh, Artur! O quê diabos fizeram com você?

Luiza tirou dois cigarros do maço que pulava para fora do bolso do meu terno pendurado e acendeu um para si e outro para mim. Núbia chegou na sala e avisou que havia me preparado um banho.

- Artur, aqui está um roupão do Evair. Separei um terno dele para que você vá trabalhar amanhã daqui mesmo.
- Obrigado, você é a melhor cunhada do mundo.
- Só me chame de cunhada quando os pombinhos casarem - e rumou para o seu quarto.

Minha noiva ajudou-me a ir até o banheiro. Despi-me e entrei na banheira. Era muito boa a sensação da água quente cobrindo todo o meu corpo após um dia de trabalho, bebida e briga. Quando volto para a sala de estar, Luiza estava ouvindo How High the Noon com Les Paul e Mary Ford. Ajeitei o sofá-cama e deitei-me. Bati no estofado fazendo um sinal para que ela chegasse mais perto.

- Não vá pro seu quarto agora. - falei em seu ouvido.

- Talvez eu não vá. - ela disse sonolentamente.

Adormecemos abraçados ali mesmo. Despertei sentindo o cheiro dos ovos mexidos que Núbia preparava para o desjejum. Perguntei por Luiza.

- Ela já foi ao trabalho. - foi a resposta que ouvi.

Olhei no relógio de pulso e vi que não chegaria a tempo na redação. Fui ao banheiro, lavei o rosto e depois tomei o café da manhã com Núbia. Agradeci pela estadia e fui até a rua da frente, onde o bonde parava. Cheguei à sede do jornal às 12:15.

- Você está três horas e quinze minutos atrasado - Matias disse assim que entrei.

Curvei-me sobre a sua mesa, abaixei o wayfarer e falei olhando nos olhos daquele frangote:

- Matias, as bolas do Heitor já estão ficando frias. O que você está fazendo aqui escrevendo?

Ele continuou a redigir em sua máquina de escrever sem nada falar. Dou alguns passos até a minha mesa e vejo Heleno saindo da pequena sala que usavámos para tomar café e lanchar. Sua mão encosta no meu ombro e sua voz grossa diz: "Que baita noite, companheiro". Frank Rockfeller estava do lado e murmura algo.

- Cala a boca que você é um fresco! - disse Heleno apontando-lhe o dedo na cara.

Antes que José de Arimatéia dissesse alguma coisa, Heitor põe-se para fora de sua sala com seu corpo atarracado. Sua cabeça calva já suava.

- Pelo amor de Deus, Artur! Que trapo você está! - ele bradou.

Apenas assenti com um gesto de cabeça.

- Heitor, se eu estou um trapo, você já se olhou no espelho alguma vez? - falei enquanto mexia em uns papéis.

- Garoto, na minha sala, agora.

Fechei a pequena porta onde a palavra "Editor-Chefe" estava grafada.

- Que porra aconteceu com você e o Heleno ontem à noite?
- Nós dois estavámos aqui do lado, no bar do Amaral e dois homenzarrões procuraram briga.
- Eu liguei pro Osvado, meu contato no 22º Distrito. Esses dois caras são dois delinquentes com uma ficha bem movimentada. Agressão, furto, assalto à mão armada, estelionato... Uma bela coleção, não acha? Negaram que alguém os tenha pago pra dar um aviso para você. Ele perguntou se vocês não iriam prestar queixa.
- Talvez. Mas o único ataque contundente que fiz no jornal foi ao antigo governador. E ele está morto há cinco anos. Bem estranho um morto mandar alguns jagunços darem um jeito em mim.
- Bem, acho que você não viu a nossa manchete vespertina.

Olhei para as letras garrafais:

                   RADIALISTA É MORTO EM EMISSORA DO INTERIOR
                                   
- Quando aconteceu isso, Heitor?
- Ontem à noite, logo depois da briga no Amaral.
- E a polícia já tem alguma pista?
- Sim, já prenderam o assassino. O infeliz fugia num jeep mas caiu num barranco. Todo mundo sabe que foi o governador. Esse radialista atacava a gestão do Ribeiro como ninguém. Aliás, já deu uma olhada no nome dele?

Li o início da matéria.

"Na madrugada desta quinta-feira, dia 7 de junho, o radialista Artur Benevides, dono da Rádio Costa Leste, foi alvejado por seis tiros calibre 42 e deu entrada no Hospital Pierre Curie já praticamente morto. O corpo será velado..."


Arregalei os olhos. O radialista morto era meu homônimo.

- Entendeu agora porque queriam te pegar, Artur? Alguém deve ter percebido que se tratava do cara errado e mexeram os pauzinhos lá em Campo Belo para pegar o radialista. Você é bem mais conhecido por trabalhar na capital claro que sobraria pra ti. Eu o conheci o seu xará na posse do Ribeiro no ano passado. Parecia um bom sujeito.
- Triste saber que eu poderia ter apanhado por algum motivo que realmente existisse.
- Você tem que tirar férias, garoto. Há quanto tempo mesmo que você não faz isso?
- Três anos. Ou mais. Não sei, acho que já perdi a conta.
- Ou você tira férias agora ou eu serei forçado a te demitir. Ouvi dizer que a Costa Oeste está procurando redatores - disse Heitor, contendo-se para não rir.
- Tudo bem, Heitor. Obrigado, até daqui um mês.
- De nada, Artur. Aproveite. Você vai para um dos chalés dos Braz com a Luiza? Eles servem um pescado delicioso por lá.
- Isso, isso mesmo. Até logo, chefe.

Saí da sala do editor-chefe com a idéia de realmente ir para a praia e alugar um chalé. Eu não tirava férias há tanto tempo que não tinha idéia do que fazer com o tempo livre. Ainda bem que Heitor me lembrou desse lugar. Disse para Heleno que só voltaria dali a trinta dias e o convidei para passar um final de semana conosco no litoral. Ele poderia levar Salete, Leila, Carla ou qualquer uma de suas garotas. E ele o faria, por saber que Luiza jamais se incomodaria.

Coincidentemente, meu Ford 1947 sairia do concerto naquele mesmo dia. Passei na oficina do Manoel e paguei o preço combinado. Acelerei o veículo e fui até a casa de Luiza, que já devia ter voltando do trabalho de meio-período na Biblioteca da Faculdade de Direito. Toquei a campainha e ela saiu lá de dentro esfregando as mãos no avental. Abracei-a firmemente e beijei seus lábios.

- Meu bem, arruma as malas e vem pro litoral comigo. Fui obrigado a tirar férias.
- Mas não posso abandonar o meu trabalho...
- Claro que pode. Você não vai mudar de emprego e trabalhar na Biblioteca Municipal? Eu realmente preciso de você nesse mês.

Após uma dose de café forte preparado por Núbia, Luiza desceu das escadas com sua mala e seu chapéu que eu havia lhe dado no último natal.

- Você está linda - eu disse do andar de baixo.

Entramos no Ford e bastava apenas recolher meus pertences no meu apartamento. Depois ela me ensinaria como é ter um tempo para si mesmo e para as pessoas que importam na sua vida. Eu já não sabia como fazer isso. Finalmente eu estaria longe daquela cidade cinzenta e cheia de concreto, pelo menos por quatro semanas. Já na estrada rumo a praia, estava feliz por me afastar cada vez mais daquele maldito relógio da catedral, que todas as vezes me lembrava o quanto eu estava cinco minutos distante do que eu realmente queria.