segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O Jantar

O jantar estava marcado para as oito e meia, o que faria Marisa chegar lá pelas nove e quinze. Estava confiando nisso, pois não havia dado tempo de fazer os preparativos adequadamente. A mesa estava posta na varanda, a massa saindo do forno e o vinho no balde de gelo. Eu olhei para o relógio de pulso: oito e quinze. Tempo para um cigarro. Escorei-me no parapeito e olhei para o céu sem nuvens e a lua estava mais cheia do que nunca vira antes. Olhei para baixo e podia avistar casais saindo da confeitaria do outro lado da rua. O bairro parecia todo parado no tempo, um souvenir de uma civilização antiga encravado na carne urbana pretensamente moderna que era a grande cidade ao seu redor. Tudo era nostálgico por aqui, andar por essas ruas era como um vórtice temporal, um rasgo de navalha nas veias do tempo. Herdei a casa de meu avô após sua morte, há quase uma década, quando eu ainda estava na faculdade de Letras, onde conheci Marisa, que cursava História no mesmo campi. No meio de tanto bicho-grilo, encontrei a única garota que dividia os mesmos gostos pelos livros que ninguém pegava na Biblioteca e pelo rock setentista e jazz. Logo começamos a namorar. Na primeira vez que ela veio aqui, lembro de sua surpresa ao ver a coleção de vinis do meu avô, que até hoje se mantém do mesmo jeito que ele deixou. A única diferença é que transformei seu quarto em um escritório domiciliar.
Enquanto eu jogava a fumaça para o ar em forma de anéis, a vitrola tocava Our Day Will Come. Poderia haver algo mais apropriado naquele momento?
Our day will come
And we’ll have everything
We’ll share the joy
Falling in love can bring
No one can tell me
That I’m too young to know
Cause I love you so
And you love me, love me
Enquanto os acordes ecoavam pela casa, o casal octogenário que mora ao meu lado, na única casa pintada com uma cor quente naquela vila, saiu junto da confeitaria e acenou para mim. Com um movimento rápido na mão que segurava o resto do cigarro, retribui o cumprimento e voltei a cabeça para o lado observando Seu Paulo ajudar sua mulher a subir os três degraus até a porta. Ver os dois sempre me deixava otimista, mas no fundo eu sabia que aquele amor só condizia com o tipo de vida que se levava por aqui, com poucas expectativas, e por isso mesmo, livre de quaisquer cobranças maiores. Agora um jovem casal passava pela minha calçada. O rapaz olhava para a garota com um olhar que mesclava admiração e um tanto de medo. Disse qualquer bobagem que a fez rir e ensaiaram uma dança com a música que saía alta das caixas de som da vitrola de meu avô. Riram mais um pouco e seguiram seu caminho abraçados. Por muitas vezes ensaiei com Marisa alguns passos desajeitados em frente aquela porta como se a rua fosse um salão de dança a céu aberto, enquanto meu avô ouvia seus discos. Minha intenção era mais bancar o bobo para fazê-la sorrir do que demonstrar qualquer habilidade, como aquele rapaz tinha feito com sua garota. Aquelas ruas sempre foram um espelho do passado.
Quando olho para o relógio na parada da sala de jantar vejo que são oito e quarenta e cinco. A campainha toca duas vezes. Antes de descer para o andar de baixo, ajusto meu blazer e no caminho até a porta, escondo alguns croquis que estavam jogados pela casa. Desço as escadas com todo aquele material de trabalho nas mãos e o jogo no quarto que serve como local de trabalho, apesar de eu ter um escritório no bairro vizinho. Ouço mais um toque na campainha e finalmente abro a porta. Marisa entra e o perfume de jasmim invade a sala. Usava um vestido azul-marinho que lhe caía muito bem parando logo abaixo dos joelhos e seus cabelos pretos como piche estavam amarrados num rabo-de-cavalo. Ela olha ao redor e depois pousa os olhos verdes sobre mim.
- Você não mudou nada por aqui. Geralmente a primeira coisa que um arquiteto projeta é a sua própria casa - falou com uma voz bem mais grave do que eu lembrava. “Deve ser por causa do cigarro”, pensei.

- É que o projeto original era muito bom pra ser modificado e o arquiteto que o projetou merece essa consideração com sua obra.

- Lembro de como você ficou triste quando ele morreu.

- Mas do que você ta falando? Eu namorava a Carolina na época. Nós dois mal mantínhamos contato.

- Era? – perguntou como se fingisse surpresa.

- Era. Você já tinha me trocado pelo cabeludo lá...

- Quem? O Bruno?

- Bem, não sei mais quantos cabeludos você namorou depois.

- Alguns, talvez. – falou enquanto nós subíamos as escadas.
Aquele cinismo não era propriedade dela. Quando a conheci, era uma garota com mais vitalidade do que qualquer uma que eu já tivesse visto. Seus olhos resplandeciam como fogos de artifício explodindo numa noite litorânea e aquele ar blasé de agora me enojava profundamente. Sequer era sexy. Era apenas uma irritante defesa, e se ela tinha ido ali imbuída deste espírito, o jantar seria uma tragédia. Nunca foi a minha intenção ajustar as contas ou algo do tipo. Só sentia que deveria vê-la após aquele breve encontro de dois anos atrás.
Ao chegar à varanda, preparo dois mojitos e nos sirvo. Ficamos em pé, apoiados no parapeito de mármore.
- Quer dizer que você ainda é sócio do Pedro? – pergunta ela ainda mantendo o tom displicente, mas eu sabia que ao falar de Pedro, ela queria chegar ao assunto Carolina, já que os dois eram irmãos.
- Bem, somos sócios pra vida, eu diria. E ele quase foi meu cunhado também – mordi a isca de propósito.
- Por quê não se casaram?
- A Carolina nunca seria feliz se casando comigo. Enquanto namorávamos, tudo estava bem, mas ela podia lidar com um namorado relapso, nunca com um marido assim.
- Você nunca foi relapso comigo. Às vezes até me aborrecia com esse seu jeito de amar demais.
- Sim, por isso você me trocou por um poetinha sensível de centro de humanidades.
- Como você é rancoroso, Ernesto. Eu te falei quando terminamos que ele me deixava mais livre, estava mais próxima do que eu queria naquele momento.
- Amor nunca é liberdade. Talvez você apenas nunca tenha me amado.
Nesse momento uma fagulha se acendeu em cada um dos olhos dela. Parecia querer dizer o contrário, mas não era mais a mesma que conheci, ou pelo menos fingia não ser. Limitou-se a permanecer calada.
- Marisa, não tenho nenhum pudor de dizer que te amei.
- A gente era tão jovem... Eu tinha dezenove anos! Você sempre foi instável pra cacete e vê tudo somente pelo seu ponto de vista. Isso foi me afastando de ti, me dava vontade de sentir alguma outra coisa. Posso ter sido infantil, mas você tem que admitir que foi também.
- Claro, meu bem. A juventude é a eterna advogada de defesa dos incautos. Me mostre um homem idiota aos vinte anos, que eu te mostro um adulto cheio de desculpas e lamentações daqui a duas décadas.
- Como se você não tivesse nenhuma, não é?
- Talvez só ter te amado tanto – chegava a hora de ser mais cínico que ela.
Preparei mais dois copos para nós e sentei no sofá. Peguei o cinzeiro e acendi mais um Lucky Strike. A vitrola tocava Chet Baker. Isn’t It Romantic? era a música mais irônica do mundo naquele instante.
- Estou com fome. Tomara que você ainda cozinhe bem.
- Depois dessa bebida, comemos. Olha, é uma bela noite de sexta-feira. Lembra que foi ali que te beijei pela primeira vez? – apontei para a entrada do cinema desativado no fim da rua.
- Lembro. Não sabia que tinham fechado o cinema. Que filme fomos ver mesmo?
- Eu sei lá. Sempre odiei cinema e só fui porque você deu a idéia. Mas naquele dia nem sequer chegamos a comprar o ingresso... – disse enquanto olhava para o relógio de parede com uma foto de Veneza ao fundo - Bem, são nove e meia e é melhor jantarmos logo.
Fui até a cozinha pegar o espaguete a parmeggiana e quando me agacho para abrir o forno, vejo que Marisa estava em pé ao meu lado com uma taça do chardonnay que eu havia deixado no balde de gelo.
- Ernesto, tomei a liberdade. Espero que você não se importe, mas esta noite pede um bom vinho.
- Não, sem problema. Eu nem gosto muito de vinho mesmo. Lembra meu padrasto – disse enquanto colocava a travessa sobre a mesa.
- Você sempre escolheu as pessoas pra odiar gratuitamente?
- Não, assim não seria gratuito.
- Você ainda tem o mesmo sorriso. O mesmo de quando te conheci – disse isso também sorrindo e colocando a taça de vinho na frente do rosto como se quisesse brindar comigo.
Fomos até a varanda e começamos a comer. Resolvi experimentar aquele vinho que havia ganhado de um cliente. Não era tão ruim e eu não me apressava em beber o mesmo número de taças que Marisa bebia.
- É, cozinha bem ainda – ela coloca as mãos cruzadas sobre o rosto e continua – Poderia até ser um chief se não fosse arquiteto. Poderia até ser um bom marido.
- Mas com você, serei sempre o ex-namorado que cozinha bem. Deve ter sentido falta disso quando o vegetariano te preparava comida macrobiótica.
- Sempre quis as coisas do meu jeito, mas ele me fazia experimentar. – disse olhando com desdém para o lado.
A mesa era um tabuleiro de xadrez e ela adorava bancar a rainha. Estávamos ali nos estudando como dois rivais e o xeque-mate podia ser adiado só pelo simples prazer de ver o adversário ainda nutrir esperanças de vitória. Sinto o pé dela roçar minha perna e aquilo me pareceu uma jogada desleal. Seu olhar estava diferente, ainda altivo, mas com aquele brilho que ela parecia ligar e desligar quando queria.
- Lembro de quando a gente dançava escutando os discos do Seu Ernesto.
- Uma dança não te daria indigestão agora? E nunca fui o melhor dos dançarinos – falei rindo com o canto esquerdo dos lábios.
- Isso é o que menos me preocupa agora – disse levantando-se e estendendo a mão em minha direção.
Peguei um compacto de Dean Martin e pus na vitrola.
Like a lazy ocean hugs the shore
Hold me close, sway me more
E ali, naquela cidade sem litoral, ela sempre fora meu oceano. Desprendi seu cabelo, segurei sua firme cintura e puxei-a contra meu corpo. Olhei para seu rosto que agora não tinha algum resquício da Marisa que tocou a campainha há uma hora e meia.
- Já nos conhecemos há tanto tempo, Ernesto. Somos jovens ainda e já é tanto tempo.
- Pelo menos você não pode dizer que estou apressando as coisas.
O beijo mais previsível de todos. Meus lábios queriam marcar todo o corpo de Marisa. Encostei-a no parapeito e subi minhas mãos até tocar seus seios pontudos. Mordo seus lábios e sinto o perfume em seu pescoço e nuca. Desfaço-me do blazer e logo nós dois estávamos nos despindo ali mesmo na varanda. E a vitrola continuava a repetir a única música que o lado daquele compacto tinha
Make me thrill as only you know how
Sway me smooth, sway me now…

4 comentários:

  1. O texto me chamou à contradança da leitura por tamanha musicalidade. Que sedutora condução... Levou-me a ouvir as canções para ambientar os sentidos de forma mais ampla. Parabéns, Abraão, que verve a tua!

    ResponderExcluir
  2. Belo texto. Descrever emoções que o tempo ainda não nos fez sentir é sempre difícil. E a trilha do jantar também foi escolhida a dedo. Mas "... por isso você me trocou por um poetinha sensível de centro de humanidades" foi pesado, cara.

    ResponderExcluir
  3. Não curto muito ficar explicando mas no fundo, o mais pau no cu de todos é o Ernesto.

    ResponderExcluir