O CALAFRIO
por Filipe Teixeira
Ela deitou-se no sofazinho do quarto aconchegando a cabeça em duas almofadas. Apoiou os pés no outro braço do móvel e apoiou o livro nas pernas, cuja morenice estava escondida pela calça de moleton cinza. Fazia frio, mas a calefação deixava o ambiente agradável. Antes de começar a ler o livro, olhou pela janela. Ainda era dia, embora os próximos minutos fossem os últimos. Os galhos secos de uma árvore em frente ao prédio gotejavam ainda os resquícios da chuva que passeara intermitente por aquela tarde. Ao lado do sofá, uma cadeira com um copo de vinho barato, de que ela tomava goles esporádicos. Ela sentava-se, pegava o copo com a mão esquerda e fechava o livro, marcando com o indicador da mão direita a página onde havia parado. A história que lia não era lá empolgante, mas era o que ela precisava naquele fim de tarde. Por vezes, ouvia uma sirene ao longe, ou um pneu cantando, ou um barulho de motor que ia veloz e imaginava o que estaria acontecendo. Transportava-se para a ambulância e segurava a mão do doente que era levado para o hospital; imaginava-se o pedestre que forçara aquela freada brusca; era a amada ansiosa que esperava por aquele amante apressado… e voltava para a leitura. Anoitecera. A luz natural já não era suficiente. Levantou-se e caminhou até o interruptor. Aproveitou e foi à cozinha para encher o copo de vinho que estava quase vazio. O álcool lhe esquentara o sangue. Diminuiu a temperatura da calefação e voltou ao sofá. A história que lia a surpreendera em certo ponto e já parecia mais interessante. Uma gota d’água prestes a cair do galho lá fora refletia a luz do poste e ela perdeu-se naquela imagem. Eram quase seis.
Ele saiu do prédio onde trabalhava e o vento frio o obrigou a calçar as luvas, embora não gostasse daqueles acessórios. O tato dos dedos ficava comprometido; por isso, quando chegou ao metrô, precisou tirar uma delas para pegar o cartão com mais agilidade. Hora do rush, os outros passageiros estavam impacientes atrás dele, não podia perder tempo. O letreiro luminoso avisava que havia perturbações na linha e que o próximo trem demoraria mais do que o previsto. Pedimos desculpas pelo transtorno. Sentou-se em um banco, tirou as luvas e pôs-se a ler o guia cultural da cidade. Marcou com uma caneta as peças de teatro, as exposições, uma mostra de cinema, um curso aos sábados e prometera a si mesmo participar de tudo, assim como fizera nos meses anteriores, mas sabia que, como nos meses anteriores, não cumpriria. Perdeu a concentração na leitura porque uma criança brincava, solta, muito perto do vão entre as plataformas. Os pais conversavam calmamente e olhavam para a criança. Ficou mais apreensivo quando ouviu o sinal de que o trem estava chegando. A luz do vagão frontal apontou. Seriam três estações, depois mudaria de linha e então mais quatro. Conseguiu um lugar sentado e retomou a leitura. Foi interrompido por um cego que pedia esmolas, depois pelo aviso da próxima estação, depois pelo casal que conversava nos assentos em frente ao seu. Desistiu. Guardou o guia na mochila, encostou a cabeça na parede do vagão e convergiu seu pensamento para a espera.
Ele desceu do metrô e caminhou os três quarteirões até o apartamento. Fazia muito frio, mas não quis pôr as luvas, afinal chegaria logo. Ela teve uma sensação atípica, o resultado da mistura entre a empolgação do livro, que definitivamente tornara-se interessante, e a quentura que o vinho espalhara por seu corpo. Aumentou a potência da calefação, tirou a calça do moleton, vestia agora só a camiseta larga e a calcinha. Tomou outro gole de vinho e abriu o livro no momento em que ouviu o som da chave girando na fechadura. Fez o movimento contrário, fechando a obra lentamente, marcando com a orelha do livro a página onde tinha parado. Ao escutar os passos, lentos, pelo corredor, pôs o livro na cadeira, ao lado do vinho. Em seguida, deitou-se mais à vontade no sofá, virando o rosto para o encosto e pousando a mão com unhas vermelhas na coxa nua. Ele parou na porta do quarto e contemplou aquela imagem. Um copo de vinho pela metade, um livro e sua morena seminua, todos no mesmo ângulo. Depôs a mochila e aproximou-se da mulher. Fez um movimento para livrar o pescoço dos cabelos e encostou levemente o dedo frio na pele dela. Ela então mordeu o lábio inferior. E tremeu.
Ela deitou-se no sofazinho do quarto aconchegando a cabeça em duas almofadas. Apoiou os pés no outro braço do móvel e apoiou o livro nas pernas, cuja morenice estava escondida pela calça de moleton cinza. Fazia frio, mas a calefação deixava o ambiente agradável. Antes de começar a ler o livro, olhou pela janela. Ainda era dia, embora os próximos minutos fossem os últimos. Os galhos secos de uma árvore em frente ao prédio gotejavam ainda os resquícios da chuva que passeara intermitente por aquela tarde. Ao lado do sofá, uma cadeira com um copo de vinho barato, de que ela tomava goles esporádicos. Ela sentava-se, pegava o copo com a mão esquerda e fechava o livro, marcando com o indicador da mão direita a página onde havia parado. A história que lia não era lá empolgante, mas era o que ela precisava naquele fim de tarde. Por vezes, ouvia uma sirene ao longe, ou um pneu cantando, ou um barulho de motor que ia veloz e imaginava o que estaria acontecendo. Transportava-se para a ambulância e segurava a mão do doente que era levado para o hospital; imaginava-se o pedestre que forçara aquela freada brusca; era a amada ansiosa que esperava por aquele amante apressado… e voltava para a leitura. Anoitecera. A luz natural já não era suficiente. Levantou-se e caminhou até o interruptor. Aproveitou e foi à cozinha para encher o copo de vinho que estava quase vazio. O álcool lhe esquentara o sangue. Diminuiu a temperatura da calefação e voltou ao sofá. A história que lia a surpreendera em certo ponto e já parecia mais interessante. Uma gota d’água prestes a cair do galho lá fora refletia a luz do poste e ela perdeu-se naquela imagem. Eram quase seis.
Ele saiu do prédio onde trabalhava e o vento frio o obrigou a calçar as luvas, embora não gostasse daqueles acessórios. O tato dos dedos ficava comprometido; por isso, quando chegou ao metrô, precisou tirar uma delas para pegar o cartão com mais agilidade. Hora do rush, os outros passageiros estavam impacientes atrás dele, não podia perder tempo. O letreiro luminoso avisava que havia perturbações na linha e que o próximo trem demoraria mais do que o previsto. Pedimos desculpas pelo transtorno. Sentou-se em um banco, tirou as luvas e pôs-se a ler o guia cultural da cidade. Marcou com uma caneta as peças de teatro, as exposições, uma mostra de cinema, um curso aos sábados e prometera a si mesmo participar de tudo, assim como fizera nos meses anteriores, mas sabia que, como nos meses anteriores, não cumpriria. Perdeu a concentração na leitura porque uma criança brincava, solta, muito perto do vão entre as plataformas. Os pais conversavam calmamente e olhavam para a criança. Ficou mais apreensivo quando ouviu o sinal de que o trem estava chegando. A luz do vagão frontal apontou. Seriam três estações, depois mudaria de linha e então mais quatro. Conseguiu um lugar sentado e retomou a leitura. Foi interrompido por um cego que pedia esmolas, depois pelo aviso da próxima estação, depois pelo casal que conversava nos assentos em frente ao seu. Desistiu. Guardou o guia na mochila, encostou a cabeça na parede do vagão e convergiu seu pensamento para a espera.
Ele desceu do metrô e caminhou os três quarteirões até o apartamento. Fazia muito frio, mas não quis pôr as luvas, afinal chegaria logo. Ela teve uma sensação atípica, o resultado da mistura entre a empolgação do livro, que definitivamente tornara-se interessante, e a quentura que o vinho espalhara por seu corpo. Aumentou a potência da calefação, tirou a calça do moleton, vestia agora só a camiseta larga e a calcinha. Tomou outro gole de vinho e abriu o livro no momento em que ouviu o som da chave girando na fechadura. Fez o movimento contrário, fechando a obra lentamente, marcando com a orelha do livro a página onde tinha parado. Ao escutar os passos, lentos, pelo corredor, pôs o livro na cadeira, ao lado do vinho. Em seguida, deitou-se mais à vontade no sofá, virando o rosto para o encosto e pousando a mão com unhas vermelhas na coxa nua. Ele parou na porta do quarto e contemplou aquela imagem. Um copo de vinho pela metade, um livro e sua morena seminua, todos no mesmo ângulo. Depôs a mochila e aproximou-se da mulher. Fez um movimento para livrar o pescoço dos cabelos e encostou levemente o dedo frio na pele dela. Ela então mordeu o lábio inferior. E tremeu.
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