segunda-feira, 16 de julho de 2012

Bandeira três

O controle remoto estava distante demais e eu nem estava prestando atenção ao jogo de futebol na TV. Seria uma boa desculpa para ir ao supermercado e comprar algumas cervejas. Mas não com esse pé de molho em cima da mesa de centro. Não com a quantidade criminosa de antibióticos que eu estava tomando. Agenor, no outro lado sala, deixa uma lagartixa passar e levanta a cabeça. Peguei a bengala, levantei-me e fui até a geladeira pegar um pouco de leite. Maldito gato.

Era um domingo ensolarado e eu preso em casa mas havia a festa de aniversário do Bento para ir. O Bento não era lá dos meus melhores amigos mas por alguma razão resolveu me convidar. Coloco o prato com leite no chão com um certo esforço e o gato se aproxima. Quando me viro para retornar à poltrona o telefone toca. Após uns sete ou oito toques estridentes consegui achar o aparelho embaixo de uma almofada.

- Alô, quem é? - atendi bruscamente.
- Cara, você vai mesmo pra festa? Como tu está de molho em casa, resolvi ceder o seu lugar no carro para uma menina aí que eu estou querendo pegar - um esbaforido Roberto falou do outro lado da linha.
- Ela é gostosa pelo menos?
- Um nocaute - usou mais uma de suas expressões tiradas de filmes B. Ele achava isso legal.
- É muita consideração sua me avisar disso. Divirta-se por lá.


Roberto era um cara sem cerimônia e infelizmente era a coisa mais próxima de uma amizade que eu tinha nesta cidade quente e feliz. Eu olhava pela janela do apartamento e todo mundo parecia alegre de uma maneira que beirava a indecência. Queria mais era que uma tempestade caísse e afogasse as famílias que faziam pique-nique nos parques e surfistas na praia logo em frente. Se fosse possível também seria formidável uma noite de trevas com nuvens encobrindo a lua e frustrando os planos de jovens casais que gostam de caminhar pela orla assim que o sol se põe. Eu queria a desgraça geral.


Depois de ter sido vítima de todo o companheirismo do único candidato a melhor amigo que tenho, decidi que iria para esta festa. Bastaria chamar um táxi e o ingresso para uma noite entediante que só serviria para confirmar todo o meu mau-humor estaria garantido. Olho para a janela e muitas pessoas caminham leves e despreocupadas lá embaixo. Uma espécie de paraíso segundo a concepção espírita, só que com muito mais pele à mostra. Agenor havia terminado sua refeição e se refestelava em cima do sofá com a barriga virada para cima, quase inerte. Aquele gato devia se sentir um pouco como eu.

Liguei para pedir o táxi e me disseram que um estaria em frente ao meu prédio em cerca de quinze minutos. Eu já estava acostumado com a bota ortopédica e então seria tempo mais do que suficiente para tomar banho e me vestir. Enquanto me arrumava acabei lembrando de que nunca tinha ido à casa do aniversariante. Por precaução, coloquei o pequeno mapa que Roberto havia desenhado no bolso da jaqueta. A residência ficava num pequeno sítio perto daqui, numa praia quase deserta.

Desço uns poucos lances de escada apesar de ter a opção de usar o elevador. Minha fisioterapeuta disse que isto era um bom exercício. Eu tinha minha própria Via Crucis na soleira da porta. Espero mais uns dois minutos e um veículo branco estaciona na minha frente.

- Foi o senhor que pediu um táxi? - um cara negro e de cabeça raspada pergunta lá de dentro.
- Sim, fui eu. - falei com a cabeça quase dentro do carro.

Assim que entrei percebi que o motorista não possuía o dedo do meio não mão esquerda. No lugar havia uma prótese de metal.

- Não se preocupe com isso, ainda consigo dirigir esse carro - falou com um largo sorriso.
Entreguei o mapa tosco e recebi um "não vai demorar muito" como resposta. Ele desligou o taximetro e negociamos um preço fixo para a viagem.
- Essa é a bandeira três, quando só eu ganho. Zero pro patrão e cem por cento pro negão. - disse enquanto comprava água de um vendedor no semáforo - O jovem não é muito de conversa?
- Na verdade, gosto mais de ouvir.
- Não deixei de perceber como você ficou impressionado com esse dedo postiço. Sabe como eu o perdi, cara?
- Numa briga de bar? - chutei, já bastante curioso.
- Foi numa briga, mas não foi em um bar. Foi no exército. Um estilhaço de granada levou o dedo que eu ia usar pra mostrar meus sentimentos por toda a instituição quando saísse de lá.
- Meu pai era militar. Era bem capaz de eu ter perdido mais que um dedo se falasse o que achava dele - eu disse enquanto João, era esse o nome escrito em seu crachá, não economizava risadas.
- E como foi que você quase perdeu a perna, jovem? - ele continuava a me chamar assim embora aparentasse não ter mais que trinta e cinco anos.
- Eu tentei atropelar um carro.
- Então você teve sorte de não ter ficado todo arrebentado.


 João ligou o rádio e o mesmo jogo que eu havia tentado acompanhar pela televisão estava sendo transmitido.

- Sabe, - João puxou conversa novamente - eu sempre gostei de futebol. Era goleiro no time do quartel. Cheguei a jogar depois do acidente. Imagina só, um goleiro com nove dedos.
- A gente tem muito em comum. Gosto de futebol mas meu hobbie é a música. Agora imagine um baterista sem uma perna. Foi por pouco.
- Eu fui criado com meu tio, um mulato neto de escravos. Ele me contou que o avô dele dizia "todo homem nasce sem uma costela e não tem mulher no mundo que faça a gente se sentir completo".
- Fui atrás da costela que me faltava e quase perdi a perna também - completei o raciocínio. Chauvinista sim, mas como vinha a calhar naquela hora...
- Bom, o sítio é esse aí. O senhor tá entregue. Se precisar de táxi liga aqui, - me deu um cartão com seu nome e número de telefone - é até mais rápido que ligar pra central.
- Tudo bem, mas me chama de Luiz na próxima. Tá aqui sua grana.
- Como o senhor quiser Seu Luiz - disse isso e saiu em disparada, mostrando os dentes. Essa havia sido a melhor conversa que tive com alguém em meses.


Toco a campainha. Ninguém aparece para abrir o grande portão de madeira. Arrisco mais uma vez, segurando o toque por mais tempo. Finalmente um magrelo de cabelo desarrumado e vestindo uma espécie de bata indiana e sunga  veio e me pergunta:

- Tu tá aqui pra festa do Bento? Eu não te conheço.
- Relaxa, magrelão. Eu também não te conheço.

Ele deu de ombros e saiu caminhando por uma vereda. Sigo o mesmo caminho do indiano de praia e em frente a casa algumas pessoas bebiam e conversavam alto por todos os lugares: corredores, degraus de escada e ao redor da piscina. Chegando perto de um grupo sentado em forma de círculo, ouço um cara de camisa branca meio esfarrapada tocando "Cotidiano" do Chico Buarque enquanto algumas garotas acompanhavam a cantoria. Como não queria participar daquele encontro extra-oficial de centro acadêmico, achei melhor entrar na sala onde vi uma mulher de cabelo preto com mechas vermelhas praticamente dormindo em cima de uma mesa. Não queria incomodá-la, mas por algum motivo ela ergueu a cabeça e pude ver que ela tinha um piercing encravado em seu lábio inferior. Parei por um instante antes de dizer qualquer coisa. Era bem bonita e destoava de todas as outras que estavam lá fora confraternizando com aquele bando de hippies de condomínio.

- Você sabe onde está o Bento?
- Lá na cozinha. É por aqui, - apontou - à sua esquerda.
- Ah, obrigado aí. E desculpa por te acordar.
- Ei, me traz uma vodka de lá. A maior dose que você puder trazer!
- Tudo bem. - disse enquanto me dirigia em busca do anfitrião.


Quando coloco os pés na porta do cômodo, Bento me vê e abre um sorriso. Parecia já levemente alcoolizado e quando vou cumprimentá-lo ele me dá um beijo no rosto. Um costume entre aquela rapaziada, pelo jeito. Afasto-me rapidamente e pergunto onde posso arrumar vodka.

- Pega na despensa. Lá tá cheio de bebida. Nem sabia que você tava podendo beber, cara. Bem-vindo de volta!

Antes que eu pudesse dizer que não era pra mim, Bento já estava mirando sua atenção para uma menina que devia ter no máximo uns dezoito. Era hora de cair fora dali e ir atrás da garota de cabelos tingidos. Peguei um copo grande, enchi até quase o destilado transbordar e voltei para a sala. Mas ela não estava mais lá. Então fiquei ali em pé com um grande copo de bebida na mão, entre o antibiótico das sete e o cheiro convidativo da Stolichnaya. Sento no sofá, apóio a perna direita em cima de um banco de madeira e deixo o copo no chão. Do bolso de dentro da jaqueta puxo um Camel e começo a fazer halos com a fumaça. "Festaça!", pensei comigo mesmo e sorri.


Já era hora de tomar meu remédio e exatamente quando pego uma cartela, Roberto passa pela sala. A princípio pensei que ele não tivesse me visto, impressão que logo se dissipou.

- E aí, Luiz! Tudo tranquilo, cara? Se levanta aí pra me dar um abraço - disse efusivamente, como sempre.
- Tá tudo bem, cara. Eu não vou me levantar daqui por sua causa - brinquei.
Roberto se sentou do meu lado e perguntou se aquilo que estava na minha mão era ecstasy. Eu apenas me limitava a ficar mudo toda vez que ele era tão estabanado.
- Luiz, vou ver o Bento. Tem algo rolando no quarto de cima. Tu vai ficar aqui ilhado mesmo? - disse isso e derrubou o copo de vodka - Ah, desculpa por ter derramado sua bebida. Não sabia que você já andava bebendo.
- Mas a bebida não é pra mim. Foi uma garota meio punk que me pediu. Você a conhece? - perguntei tentando demonstrar desinteresse.
- É a Daniela. Prima do Bento. Mas você não sabe quem é que vem pra cá, sabe?
- Não mesmo. Eu devia saber?
- A Paula.
- É, eu não esqueci que conheci o Bento por causa dela. Mas ela não estava na França?
- Chegou de viagem ontem. Vou indo pro quarto lá de cima. Tá rolando uma festa dentro da festa. Mando alguém te trazer uma bebida pra você dar pra Daniela.


Disse isso e subiu as escadas rapidamente. Eu fiquei digerindo a notícia de que Paula viria. Será que ela traria o Javier para cá? O pior é que nem seria falta de consideração já que ela é a amiga do Bento. O intruso aqui sou eu. Ah, se aquele carro não tivesse me acertado eu poderia ter socado a cara andaluz daquele metido até criar nela uma bacia hidrográfica de puro sangue espanhol. Enquanto eu ruminava mentalmente tudo aquilo, o magrelo que me recebera chega na sala de mãos dadas com uma das meninas que acompanhavam o violonista lá fora. Cada um segura um copo de vinho e ele começa a vasculhar pelos vinis que estavam em uma caixa em cima da mesa. Passa por todos e talvez não encontrando algo de seu interesse, desiste, levando sua acompanhante para o quarto lá em cima. Enquanto subiam as escadas, Daniela descia tossindo bastante.

- Esse pessoal está num sítio e vai fumar maconha dentro de um quarto. Não consigo entender. - ela disse um pouco brava.
- Alguém te pediu um careta? - puxo um do maço e ofereço a ela.
- É, pediram. E falando desse jeito. Um "careta". Expressão engraçada, né? Escuta, você está perdido por aqui?
-  Perdido e preso com essa perna. Tô quase de saída.
- Eu também não sei o porquê de ainda vir nessas confraternizações do Bento. Detesto essas pessoas fingindo que estão numa comunidade hippie por um dia. Parece mais um reality show. -
- É, eu tô me sentindo mais entediado que o Dennis Hopper na fazenda de bichos-grilos em Easy Rider. - disse fingindo aborrrecimento e ela sorriu.


O cara do violão desce com uma garrafa de vodka e dois copos dizendo que Roberto havia pedido pra ele nos levar bebida. "Até que ele é útil pra alguma coisa", refleti.

- Ei, vamos dar uma olhada nesses discos. - Daniela disse.
- Você gosta de música?
- Sim, sou DJ. E você faz o quê?
- Trabalho como fotógrafo no Diário do Litoral. Mas tô de licença.
- Ah, por causa da perna?
- É, fica difícil correr nos estádios e tocar bateria.
- Você toca? Bacana. Olha aqui o que eu achei! Richard Hell & The Voidoids! - e então ela colocou aquele exemplar do Blank Generation para tocar.

                        Love comes in Spurts.


 Enquanto os acordes tocavam eu batia apenas a perna esquerda no chão.

- Que pena a sua perna. Nem dá pra gente brincar de pogo.
- Mas dá pra cuspir em uns hippies, o que você acha?
Ela riu mais uma vez e começou a dançar sozinha enquanto eu nos servia.
- Pura, por favor. A maior dose que você puder, lembra?


Estiquei o braço e entreguei-lhe uma generosa dose, a qual ela tomou quase de uma só vez. Sentei numa cadeira e tomei um gole também. É, os remédios podiam ir se danar aquela hora.

- Que outros discos tem aí? - perguntei baixando a guarda aos poucos.
- Bob Dylan, Etta James, Suicide, Gerson King Combo, Damned e Buzzcocks. Tem uns de jazz também. - ela parecia animada e eu estava pensando quando a veria discotecar.
- Bem diversificado. Coloca o do Buzzcocks depois.


Ficamos ali sentados enquanto Richard Hell era a trilha sonora de nossa festa particular. Vez ou outra alguém da outra festa passava, mas não davamos a mínima. Ela tinha trejeitos bastante femininos apesar daquela maquiagem carregada, dos brincos, das duas tatuagens e do piercing. A sensação era de que teríamos nos dado bem em qualquer época de nossas vidas. Eu não estava forçando a barra demais? Até hoje não sei. Pessoas machucadas tendem a se aproximar, como um doente em um hospital sente empatia pelo seu colega de enfermaria.

- Vou colocar o que você pediu agora, Luiz.


 Já sob o efeito da bebida ela errou a posição agulha e colocou justamente em Ever Fallen In Love. Ponto pra ela. Estavámos sentados um de frente pro outro e pergunto se ela não quer ir para o sofá, alegando que minha perna precisava ser apoiada sobre algo.

- Coloca sobre as minhas.


Foi um soco que me arrancou outra costela.


Paula e Javier chegaram exatamente quando minha boca engolia Daniela. Era hora de convidá-la pra ouvir meus discos lá em casa. Era hora de ligar pro João.


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