Enquanto eu jogava a
fumaça para o ar em forma de anéis, a vitrola tocava Our
Day Will Come.
Poderia haver algo mais apropriado naquele momento?
Our day will come
And
we’ll have everything
We’ll
share the joy
Falling
in love can bring
No
one can tell me
That
I’m too young to know
Cause
I love you so
And
you love me, love me
Enquanto
os acordes ecoavam pela casa, o casal octogenário que mora ao meu
lado, na única casa pintada com uma cor quente naquela vila, saiu
junto da confeitaria e acenou para mim. Com um movimento rápido na
mão que segurava o resto do cigarro, retribui o cumprimento e voltei
a cabeça para o lado observando Seu Paulo ajudar sua mulher a subir
os três degraus até a porta. Ver os dois sempre me deixava
otimista, mas no fundo eu sabia que aquele amor só condizia com o
tipo de vida que se levava por aqui, com poucas expectativas, e por
isso mesmo, livre de quaisquer cobranças maiores. Agora um jovem
casal passava pela minha calçada. O rapaz olhava para a garota com
um olhar que mesclava admiração e um tanto de medo. Disse qualquer
bobagem que a fez rir e ensaiaram uma dança com a música que saía
alta das caixas de som da vitrola de meu avô. Riram mais um pouco e
seguiram seu caminho abraçados. Por muitas vezes ensaiei com Marisa
alguns passos desajeitados em frente aquela porta como se a rua fosse
um salão de dança a céu aberto, enquanto meu avô ouvia seus
discos. Minha intenção era mais bancar o bobo para fazê-la sorrir
do que demonstrar qualquer habilidade, como aquele rapaz tinha feito
com sua garota. Aquelas ruas sempre foram um espelho do passado.
Quando
olho para o relógio na parada da sala de jantar vejo que são oito e
quarenta e cinco. A campainha toca duas vezes. Antes de descer para o
andar de baixo, ajusto meu blazer e no caminho até a porta, escondo
alguns croquis que estavam jogados pela casa. Desço as escadas com
todo aquele material de trabalho nas mãos e o jogo no quarto que
serve como local de trabalho, apesar de eu ter um escritório no
bairro vizinho. Ouço mais um toque na campainha e finalmente abro a
porta. Marisa entra e o perfume de jasmim invade a sala. Usava um
vestido azul-marinho que lhe caía muito bem parando logo abaixo dos
joelhos e seus cabelos pretos como piche estavam amarrados num
rabo-de-cavalo. Ela olha ao redor e depois pousa os olhos verdes
sobre mim.
- Você não mudou nada por aqui. Geralmente a primeira coisa que um
arquiteto projeta é a sua própria casa - falou com uma voz bem mais
grave do que eu lembrava. “Deve ser por causa do cigarro”,
pensei.
- É que o projeto original era muito bom pra ser modificado e o arquiteto que o projetou merece essa consideração com sua obra.
- Lembro de como você ficou triste quando ele morreu.
- Mas do que você ta falando? Eu namorava a Carolina na época. Nós dois mal mantínhamos contato.
- Era? – perguntou como se fingisse surpresa.
- Era. Você já tinha me trocado pelo cabeludo lá...
- Quem? O Bruno?
- Bem, não sei mais quantos cabeludos você namorou depois.
- Alguns, talvez. – falou enquanto nós subíamos as escadas.
- É que o projeto original era muito bom pra ser modificado e o arquiteto que o projetou merece essa consideração com sua obra.
- Lembro de como você ficou triste quando ele morreu.
- Mas do que você ta falando? Eu namorava a Carolina na época. Nós dois mal mantínhamos contato.
- Era? – perguntou como se fingisse surpresa.
- Era. Você já tinha me trocado pelo cabeludo lá...
- Quem? O Bruno?
- Bem, não sei mais quantos cabeludos você namorou depois.
- Alguns, talvez. – falou enquanto nós subíamos as escadas.
Aquele
cinismo não era propriedade dela. Quando a conheci, era uma garota
com mais vitalidade do que qualquer uma que eu já tivesse visto.
Seus olhos resplandeciam como fogos de artifício explodindo numa
noite litorânea e aquele ar blasé de agora me enojava
profundamente. Sequer era sexy. Era apenas uma irritante defesa, e se
ela tinha ido ali imbuída deste espírito, o jantar seria uma
tragédia. Nunca foi a minha intenção ajustar as contas ou algo do
tipo. Só sentia que deveria vê-la após aquele breve encontro de
dois anos atrás.
Ao
chegar à varanda, preparo dois mojitos e nos sirvo. Ficamos em pé,
apoiados no parapeito de mármore.
-
Quer dizer que você ainda é sócio do Pedro? – pergunta ela ainda
mantendo o tom displicente, mas eu sabia que ao falar de Pedro, ela
queria chegar ao assunto Carolina, já que os dois eram irmãos.
-
Bem, somos sócios pra vida, eu diria. E ele quase foi meu cunhado
também – mordi a isca de propósito.
-
Por quê não se casaram?
-
A Carolina nunca seria feliz se casando comigo. Enquanto namorávamos,
tudo estava bem, mas ela podia lidar com um namorado relapso, nunca
com um marido assim.
-
Você nunca foi relapso comigo. Às vezes até me aborrecia com esse
seu jeito de amar demais.
-
Sim, por isso você me trocou por um poetinha sensível de centro de
humanidades.
-
Como você é rancoroso, Ernesto. Eu te falei quando terminamos que
ele me deixava mais livre, estava mais próxima do que eu queria
naquele momento.
-
Amor nunca é liberdade. Talvez você apenas nunca tenha me amado.
Nesse
momento uma fagulha se acendeu em cada um dos olhos dela. Parecia
querer dizer o contrário, mas não era mais a mesma que conheci, ou
pelo menos fingia não ser. Limitou-se a permanecer calada.
-
Marisa, não tenho nenhum pudor de dizer que te amei.
-
A gente era tão jovem... Eu tinha dezenove anos! Você sempre foi
instável pra cacete e vê tudo somente pelo seu ponto de vista. Isso
foi me afastando de ti, me dava vontade de sentir alguma outra coisa.
Posso ter sido infantil, mas você tem que admitir que foi também.
-
Claro, meu bem. A juventude é a eterna advogada de defesa dos
incautos. Me mostre um homem idiota aos vinte anos, que eu te mostro
um adulto cheio de desculpas e lamentações daqui a duas décadas.
-
Como se você não tivesse nenhuma, não é?
-
Talvez só ter te amado tanto – chegava a hora de ser mais cínico
que ela.
Preparei
mais dois copos para nós e sentei no sofá. Peguei o cinzeiro e
acendi mais um Lucky Strike. A vitrola tocava Chet Baker. Isn’t
It Romantic?
era a música mais irônica do mundo naquele instante.
-
Estou com fome. Tomara que você ainda cozinhe bem.
-
Depois dessa bebida, comemos. Olha, é uma bela noite de sexta-feira.
Lembra que foi ali que te beijei pela primeira vez? – apontei para
a entrada do cinema desativado no fim da rua.
-
Lembro. Não sabia que tinham fechado o cinema. Que filme fomos ver
mesmo?
-
Eu sei lá. Sempre odiei cinema e só fui porque você deu a idéia.
Mas naquele dia nem sequer chegamos a comprar o ingresso... – disse
enquanto olhava para o relógio de parede com uma foto de Veneza ao
fundo - Bem, são nove e meia e é melhor jantarmos logo.
Fui
até a cozinha pegar o espaguete a parmeggiana e quando me agacho
para abrir o forno, vejo que Marisa estava em pé ao meu lado com uma
taça do chardonnay
que
eu havia deixado no balde de gelo.
-
Ernesto, tomei a liberdade. Espero que você não se importe, mas
esta noite pede um bom vinho.
-
Não, sem problema. Eu nem gosto muito de vinho mesmo. Lembra meu
padrasto – disse enquanto colocava a travessa sobre a mesa.
-
Você sempre escolheu as pessoas pra odiar gratuitamente?
-
Não, assim não seria gratuito.
-
Você ainda tem o mesmo sorriso. O mesmo de quando te conheci –
disse isso também sorrindo e colocando a taça de vinho na frente do
rosto como se quisesse brindar comigo.
Fomos
até a varanda e começamos a comer. Resolvi experimentar aquele
vinho que havia ganhado de um cliente. Não era tão ruim e eu não
me apressava em beber o mesmo número de taças que Marisa bebia.
-
É, cozinha bem ainda – ela coloca as mãos cruzadas sobre o rosto
e continua – Poderia até ser um chief se não fosse arquiteto.
Poderia até ser um bom marido.
-
Mas com você, serei sempre o ex-namorado que cozinha bem. Deve ter
sentido falta disso quando o vegetariano te preparava comida
macrobiótica.
-
Sempre quis as coisas do meu jeito, mas ele me fazia experimentar. –
disse olhando com desdém para o lado.
A mesa era um
tabuleiro de xadrez e ela adorava bancar a rainha. Estávamos ali nos
estudando como dois rivais e o xeque-mate podia ser adiado só pelo
simples prazer de ver o adversário ainda nutrir esperanças de
vitória. Sinto o pé dela roçar minha perna e aquilo me pareceu uma
jogada desleal. Seu olhar estava diferente, ainda altivo, mas com
aquele brilho que ela parecia ligar e desligar quando queria.
-
Lembro de quando a gente dançava escutando os discos do Seu Ernesto.
-
Uma dança não te daria indigestão agora? E nunca fui o melhor dos
dançarinos – falei rindo com o canto esquerdo dos lábios.
-
Isso é o que menos me preocupa agora – disse levantando-se e
estendendo a mão em minha direção.
Peguei um compacto
de Dean Martin e pus na vitrola.
Like
a lazy ocean hugs the shore
Hold
me close, sway me more
E
ali, naquela cidade sem litoral, ela sempre fora meu oceano.
Desprendi seu cabelo, segurei sua firme cintura e puxei-a contra meu
corpo. Olhei para seu rosto que agora não tinha algum resquício da
Marisa que tocou a campainha há uma hora e meia.
-
Já nos conhecemos há tanto tempo, Ernesto. Somos jovens ainda e já
é tanto tempo.
-
Pelo menos você não pode dizer que estou apressando as coisas.
O
beijo mais previsível de todos. Meus lábios queriam marcar todo o
corpo de Marisa. Encostei-a no parapeito e subi minhas mãos até
tocar seus seios pontudos. Mordo seus lábios e sinto o perfume em
seu pescoço e nuca. Desfaço-me do blazer e logo nós dois estávamos
nos despindo ali mesmo na varanda. E a vitrola continuava a repetir a
única música que o lado daquele compacto tinha
Make
me thrill as only you know how
Sway
me smooth, sway me now…