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Era uma noite quente de sexta-feira quando pisei no Lupanar e Suzana não estava me esperando com uma caneca de cerveja. Dantas, a proprietária do local, me disse que a branquela não havia voltado das compras que fora fazer no final da tarde. Pedi uma dose dupla de uísque e resolvi esperar. As placas de neon piscavam nas ruas do velho Centro da cidade e logo iriam parecer cada vez mais turvas para os olhos boêmios dos frequentadores dos bares, prostíbulos e casas de jogos ilegais.
Acendi um Camel com o Zippo que Ted Boy havia esquecido no meu carro. Àquela altura ele devia estar interrogando o traficantezinho de quinta categoria que havíamos prendido pela manhã. Ted Boy era o tipo de sujeito que teria um grande futuro na polícia, pelo que todos diziam. Filho de inspetor, formado em Direito, família de classe média, disciplinado e um par de óculos que junto de seus ternos bem cortados lhe conferiam um aspecto intelectualizado demais para ser um cana. Era o exato oposto de mim: um bisneto de imigrantes pobres, natural do Boto Preto, uma vizinhança imunda que ficava lá pras bandas do porto, usuário de jaquetas de couro surradas e que aprendeu a brigar com um marinheiro que foi uma espécie de padrasto torto.
Coloquei meus olhos sobre o jornal que estava sobre o balcão e em uma grande foto na primeira página o filho do prefeito apareceu sorridente em sua campanha para deputado federal. Apostar na sua eleição era uma poule de cem. Com aquele cabelo ensebado de gel e sorriso largo sobre um queixo anguloso logo teríamos o mais novo puro-sangue liderando o páreo. A eterna escolha entre os escolhidos.
- Vai votar nele? - Matias, o barman, me perguntou.
- Não, só estava lendo. Sabe por quê a Suzana não veio trabalhar hoje?
- Não sei, ela nunca falta. Eu mesmo liguei para o apartamento dela mas ninguém atendeu.
Agradeci ao Matias, terminei o drink e saí do bar. Um maldito de um panfleto do primeiro-filho da cidade flanava pelos ares. Dei um soquinho no papel que logo foi ao chão. Com um prazer infantil mostrei o dedo do meio pra foto daquela cara que parecia feita de cera. Entrei no meu carro, liguei o veículo e toquei para o apartamento de Suzana. Quando atravessei uma larga ponte meu celular tocou. Deixei o aparelho no viva-voz e atendi a ligação: "Enseada. Briga. Dois baleados e um morto". Esse era eu recebendo as robóticas instruções de Ted Boy.
Cheguei ao local, um bar fedido nas cercanias da minha antiga vizinhança, Ted Boy já havia isolado a área e conversava com Bastos, nosso colega, e com o Palhares, o médico-legista. Bastos era o mais antigo membro do distrito apesar de ser mais novo que a maioria dos policiais e possuía uma ilibada reputação. Palhares tinha mais ou menos uns cinquenta anos e seu semblante tinha aquela morbidez típica dos que trabalham examinando e cortando defuntos. Seu nome verdadeiro era Carlos Marinho, mas todos o chamavam de Palhares porque julgavámos que este era um bom nome para um legista. Em todo filme policial brasileiro tem um legista chamado Palhares.
Uma ambulância já havia recolhido os dois homens que foram baleados, um garçom e um traficante conhecido como Bolinha. A gente tinha um Ted Boy e um Palhares, logo merecíamos meliantes com nomes melhores. Lembro da vez que prendi um sujeito chamado Ananias Incendiário e me senti dentro de um filme de baixo orçamento. Ananias era piromaníaco e tornou-se reconhecido por queimar seus inimigos vivos. Ironicamente tinha morrido um ano antes do episódio no Enseada durante um incêndio causado por um curto-circuito no presídio em que cumpria pena. Quando soubemos da notícia tratamos de contar logo ao Palhares que mandou uma de suas clássicas analogias: "é como ser ninfomaníaco e morrer numa suruba que você não organizou".
Palhares olhava taciturnamente para o corpo e Ted Boy falou sem fazer rodeios: - Esse cara é amigo Dinho Sassuolo. O nome dele é... era Jair Albuquerque. Estudou com a gente no Santa Fé há mais ou menos, deixa eu ver, uns dez anos.
- No que ele tava metido? - indaguei.
- Você devia me perguntar com quem ele estava metido.
- Tem uma marca de mordida perto da jugular esquerda do Jair.
Abaixei-me para conhecer de perto nosso mais novo amigo e pude ver um grande pôster estampado com a foto do herdeiro dos Sassuolos onde se podia ler o slogan "A tradição da juventude".